J. HERCULANO PIRES
AGONIA
DAS
RELIGIÕES
3 edição 1989
- 3.000 exemplares Capa: ÍCARO
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ÍNDICE
INTRODUÇÃO - TEMPOS DE AGONIA ...............................................................4
CAPITULO I - AGONIA DAS RELIGIÕES ............................................................8
CAPÍTULO II - RELIGIÃO COMO FATO SOCIAL
...............................................12
CAPITULO III - A EXPERIÊNCIA DE DEUS ......................................................16
CAPÍTULO IV - EXPERIÊNCIA NO TEMPO .......................................................21
CAPITULO V - DEUS, ESPIRITO E MATÉRIA ...................................................25
CAPITULO VI - A CRIAÇÃO DO HOMEM .........................................................29
CAPÍTULO VII - DO PRINCÍPIO INTELIGENTE
.................................................33
CAPÍTULO VIII - O CORPO – BIOPLÁSMICO ....................................................37
CAPITULO IX - DÚVIDA E CERTEZA ...............................................................41
CAPITULO X - MAGIA E MISTICISMO ..............................................................45
CAPITULO XI - A CURA DIVINA .......................................................................49
CAPITULO XII - RITO E PALAVRA ....................................................................54
CAPÍTULO XIII - REVOLUÇÃO CÓSMICA .........................................................58
CAPITULO XIV - O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA ................................................63
A
Teoria do Conhecimento implica as áreas culturais da Ciência, da
Filosofia e da Religião. Mas a partir do Renascimento a Religião se desligou
desse contexto. Desenvolveu-se a cultura leiga e as religiões se encastelaram
no conceito de sua origem divina, decorrente do dogma da Revelação.
A Cultura dividiu-se em duas áreas conflitivas: a religiosa e a profana.
Descartes proclamou, no Discurso do Método, a existência
de dois tipos humanos (homo sapiens): o dos homens mais do que homens, que
recebiam a sabedoria do próprio Deus, e o dos homens simplesmente homens, que
buscavam o conhecimento através da razão e da pesquisa. Kant sancionou, em sua Critica da Razão, essa distinção que
realmente se fazia necessária. Quais foram as conseqüências desse episódio cultural na crise religiosa contemporânea? E qual a solução possível para
essa crise? Qual a situação atual das religiões?
O inicio da Era Cósmica já produziu profundos abalos e
modificações nos dois campos. Haverá uma possibilidade de reunificar-se a
cultura geral da nossa civilização? Qual a razão das súbitas modificações nas
religiões tradicionais e em suas próprias teologias? O que significam as
tentativas de elaboração de um Cristianismo Ateu?
INTRODUÇÃO - TEMPOS DE AGONIA
O desenvolvimento da humanidade tem sido marcado por fases
de agonia e de morte, seguidas de fases mais duradouras de ressurreição e
reconstrução. As forças que determinam essa espantosa sucessão encontram-se na
própria criatura humana. Seria inútil buscarmos urna explicação celeste,
fundada nos pressupostos da Ira de Deus ou da Justiça Divina, como seria inútil
procurarmos enquadrá-la nas brilhantes teorias relativas à influência dos
ritmos telúricos. A própria doutrina aristotélica da geração e corrupção
não poderia dar-nos os elementos concretos do fenômeno. Segundo Toynbee, as
civilizações se desenvolvem nas linhas conceptuais de uma religião fundamenta/centram em agonia
quando se esvai o poder vital dessas religiões. A relação sociedade-religião
parece perfeitamente válida, mas não nos oferece o segredo dessa estranha
mecânica da agonia.
Os processos sócio-culturais de cada civilização têm a sua
fonte no homem, pois a sociedade se apresenta objetivamente como um
conglomerado humano. Parece evidente que o ritmo agônico deve estar ligado às
entranhas e ao psiquismo do homem. Como estamos vivendo, agora, precisamente
numa das curvas agudas desse ritmo - talvez a mais aguda par que já passou
a humanidade - o momento é propicio para examinarmos o fenômeno ao vivo,
tocando com os dedos os seus elementos determinantes. A agonia atual das
religiões é geralmente considerada como resultante da situação crítica da
sociedade em seu acelerado desenvolvimento tecnológico. O mundo do supérfluo,
em contradição
com o mundo da escassez, na estrutura social em que vivemos, levaria a
civilização atual a um beco sem saída. As religiões agonizam porque o edonismo social e o
correspondente pedantismo cultural esvaziaram igualmente as arcas de tesouros
metálicos dos ricos, os baús de crenças e crendices dos pobres, as esperanças
de sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de riqueza do planeta e
até mesmo o balaio de sonhos da Lua e as esperanças de um céu convertido em frios desertos siderais em que rolam mundos áridos e
despovoados.
Inverte-se a tese de Toynbee. As religiões seriam
produzidas e mantidas pelas civilizações, como o mel pelas comunidades das
abelhas. Deus, filho do homem, está morto, segundo constatam os teólogos mais
avançados. E enquanto os religiosos voltam a matar-se reciprocamente em nome do
deus morto, as grandes potências da civilização sem perspectivas preparam os
funerais atômicos da Terra. A opressão estatal esmaga o homem nas áreas
capitalistas e socialistas. O Leviatã de Hobbes ameaça
o mar, a terra e o céu. Como decifrarmos o enigma destes tempos apocalípticos,
quando o próprio ato de pensar parece estar sujeito a controles telepáticos? Os
defensores da liberdade transformam-se em terroristas e seqüestradores ou em
líricos distribuidores de flores murchas, embalsamadas nas palavras mortas de
paz e amor. A inocência das crianças desaparece na voragem da criminalidade
infantil. E os velhos alquebrados, de olhos vazios, não encontram mais nos
templos os signos da fé que os embalou na infância, na
adolescência, na mocidade e na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras
sem hábitos, os monges sem escapulários e as santos cassados em sua santidade
já não podem consolar os crentes.
O que acontece para que tudo se subverta dessa maneira
total e violenta? Foi a morte de Deus que esvaziou o mundo ou foi o vazio do
mundo que matou Deus?
As estruturas sociais são coercitivas. Do clã à tribo e à
horda, e desta à civilização, a lei do aglomerado humano é uma só, mas se
desenvolve num ritmo de pressão crescente. A coerção aumenta na razão direta da
estruturação. Da cabana do pajé à sacristia a religião segue esse mesmo ritmo.
A massificação do homem na sociedade moderna fez o
caminho de retorno sobre as conquistas do individualismo ateniense. Esparta
suprimiu Atenas. O sonho frustrado da República de Platão já prenunciava o
Leviatã de Hobbes. O desenvolvimento tecnológico aumentou a pressão social
sobre o homem, como o desenvolvimento da institucionalização religiosa gerou o
totalitarismo eclesiástico das grandes civilizações orientais, leviatãs
teocráticas, e forjou a engrenagem férrea do milênio medieval. Os sonhos da
Renascença, um instante para respirar, apagaram-se impotentes nas garras de aço
da tecnologia contemporânea. A torquês social da moral e da religião esmagou as
gerações em nome da utopia conjugada de liberdade e civilização.
O desespero existencial de Kierkegaard e a náusea de
Sartre foram os frutos amargos da escamoteação da natureza humana pela
hipocrisia farisaica dos formalismos sociais e religiosos. O homem formalizado
perdeu a naturalidade e só teve uma saída para a
sua angústia existencial: matar Deus e
rebelar-se contra a sociedade. O fato não é novo. Repetiu-se na História, com
os episódios de repressão violenta dos rebelados nas civilizações teocráticas e
massivas do Egito faraônico, da Mesopotâmia, de Israel com suas leis de pureza,
da Idade Média e da Era Vitoriana na Inglaterra. Os libertinos medievais, a
prostituição romana, o nudismo de comunidades religiosas que buscavam o estado
de graça do paraíso perdido, o deslumbramento da Europa do Século XVI ante a
suposta liberdade absoluta dos selvagens da América são antecedentes da era
pornográfica que assinala a libertinagem do nosso tempo.
Bastam esses fatos para podermos tocar com os dedos a
fímbria da verdade. Em Os Demônios de Loudun, Aldous Huxley oferece-nos um
quadro portentoso das medidas eclesiásticas e das providências estatais, na
Europa dos séculos XVI e XVII, com repercussões no Século XVIII, para aliviar a
pressão moral e religiosa no caldeirão social. Informa Huxley: "Os
prelados franceses e alemães estavam acostumados a receber o cullagium de todos
os padres e informavam àqueles que não tinham concubinas que poderiam tê-las,
se quisessem, mas que deveriam pagar para isso uma licença, e mais, que essa
licença deveria ser paga mesmo pelos que não as tivessem." O celibato forçado
explodia de tal maneira que era conveniente regulamentá-lo, a fim de salvar-se
pelo menos a aparência de santidade dos clérigos. Numa das notas de seu dicionário, Bayle
conta como o Senado de Veneza tolerava os escândalos do clero para
desprestigiá-lo na opinião pública, em favor das conveniências do Estado.
A deformação da criatura humana pelas exigências
antinaturais das religiões dá-nos a chave do processo cíclico da morte das
civilizações. Isso não quer dizer que tenhamos de aceitar as teorias atuais de
uma psicologia libertina, mas que devemos compreender o erro e o perigo das
repressões extremas em nome da moral e das religiões. Podemos compreender
claramente que esse extremismo equivale á medicação de disfarce, que esconde o
mal permitindo o seu desenvolvimento secreto no organismo social. A Inglaterra
da moral vitoriana está hoje a braços com a explosão de situações
incontroláveis. O seu Parlamento majestoso é levado á
adoção de leis e medidas deletérias, como as referentes aos problemas da
homossexualidade juvenil.
O ministério dos ciclos agônicos é facilmente decifrado
quando levantamos a máscara de hipocrisia das sociedades antinaturais. O mesmo se dá
no tocante ás religiões repressivas, que acabam vencidas pela rebelião dos
instintos naturais, agonizando no descrédito ou sendo substituídas
por outras. Acusa-se o Cristianismo
de ser o responsável pela
universalização da hipocrisia, mas os próprios evangelhos atestam a atitude
racional do Cristo em face dos que pretendiam lapidar a mulher adúltera. No
caso de Zaqueu, o Cristo aceita a sua hospitalidade quando ele promete devolver
aos pobres o fruto impuro dos seus roubos. Madalena arrependida tornou-se a. seguidora
dedicada e a escolhida para ser a primeira a vê-lo depois da ressurreição. Não há dúvida
que os excessos repressivos do Cristianismo não foram determinados pelo Cristo
mas pelos seus apóstolos judeus, contaminados pela hipocrisia farisaica e de
outras seitas judaicas.
O Apóstolo Paulo, o que melhor compreendeu a posição do Cristo em tantos aspectos,
não conseguiu escapar aos prejuízos do judaísmo, de sua formação judaica,
quando se referia aos processos de repressão, tornando-os ainda mais agudos na
religião nascente.
Explica-se a atitude paulina ante os abusos e excessos das
religiões pagãs, mitológicas, em que as práticas fálicas, os rituais
dionisíacos, toda a herança da velha Suméria, da Mesopotâmia, da libertinagem
da Grécia e de Roma contaminavam as ingênuas comunidades cristãs, ameaçando com
os seus excessos os princípios espirituais da religião nascente. Paulo,
extremamente zeloso, apegava-se aos resíduos da sua formação farisaica, agindo
com violência para impedir que os cristãos retornassem às práticas da
irresponsabilidade moral. Mas há enorme distância entre as medidas enérgicas de
Paulo, que não usava a máscara da hipocrisia, e as medidas repressivas que mais
tarde judaizaram as religiões cristãs. Ele, que combateu sem cessar os
apóstolos judaizantes, incidiu no mesmo erro que tanto condenara, mas justificado pelas circunstâncias
de uma época de ignorância e de costumes geralmente condenáveis.
O ponto crucial do problema religioso chama-se hipocrisia.
E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da falta de compreensão do
verdadeiro sentido da Religião, que é caminho e não ponto de chegada da
espiritualização do homem. Os religiosos que pretendem atingir a santidade do
dia para a noite, que se revestem de pureza exterior, encobrindo a podridão
interior, são as hipócritas condenados veementemente no Evangelho. A solução
desse grave problema, que responde pela morte cíclica das civilizações, está na
compreensão da verdadeira natureza do homem, do processo natural do seu
desenvolvimento espiritual. Os artifícios purificadores só servem para mascarar
os indivíduos pretensiosos. As práticas ascéticas não podem ser forçadas. As
paixões e os instintos do homem são manifestações de forças vitais que, sob o
controle da razão e do sentimento, podem e devem guiar o espírito nos rumos da
transcendência.
Repetimos agora os ciclos agônicos do Oriente, da Grécia e
Roma, de Israel, da Europa Medieval. a explosão pornográfica sobrepõe-se aos
instintos vitais e aos controles sociais. E a agonia das religiões anuncia a
morte da civilização tecnológica. Não obstante, há uma esperança para a
brilhante civilização condenada. As forças do espírito reagem contra a
derrocada moral. Como na queda de Bizâncio, enquanto os clérigos cantam e
pregam em meio à derrocada há vigias de uma nova era espreitando o futuro nas
almenaras. E o que procuro demonstrar neste livro, num rápido confronto das
estruturas envelhecidas com as novas estruturas que nascem da própria terra,
sob os nossos pés. Poluída, envenenada, devastada, ameaçada, a Terra dos
Homens, nossa mãe, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para novas dimensões
de uma realidade em que estamos perdidos.
CAPITULO I - AGONIA DAS RELIGIÕES
As Religiões estão morrendo. Este é um dos fatos marcantes
do nosso tempo, mais precisamente do Século XX. O poder das Religiões não é
mais religioso, mas simplesmente econômico, político e social. As igrejas se
esvaziam, os seminários se fecham, a vocação sacerdotal desaparece, o clero de
todas elas recorre no mundo inteiro aos mais variados expedientes para manter
seus rebanhos, fazendo-lhes concessões perigosas. Mas todos os expedientes
mostram-se incapazes de restabelecer o prestigio e o poder religiosos, servindo
apenas de remendos de pano novo em roupa velha, segundo a expressão evangélica.
Começam então a aparecer os sucedâneos, milhares de seitas forjadas por videntes
e profetas da última hora, na maioria leigos que se apresentam como
missionários, taumaturgos populares, místicos improvisados e de olhos mais
voltados para os bens terrenos do que para os tesouros do Reino dos Céus.
Esses bastardos do espírito, que pululam por toda parte,
caracterizam o fenômeno sócio-cultural da morte das Religiões. O fato é bem
conhecido dos que estudam a Sociologia da Cultura. Quando um sistema
institucional esvazia-se no tempo, tragado na voragem das mudanças culturais,
os aproveitadores invadem os domínios abandonados e socorrem a seu modo os
órfãos em desespero. As grandes revoluções políticas e sociais mostram-nos como
os tiranetes do populacho assumem as funções dos nobres decaídos, substituindo
a autoridade tradicional pelo mandonismo dos clãs ressuscitados. Podemos
aplicar ao caso uma paródia da explicação metafísica do horror ao vácuo,
dizendo que as sociedades têm horror ao caos e preenchem a falta de autoridade
legítima (ou pelo menos legitimada) pelo autoritarismo dos sátrapas.
Esse evidente sintoma de agonia das instituições
tradicionais está presente em toda a área religiosa do nosso tempo. E o carisma
das fases de mudança. Não há dúvida, portanto, de que as Religiões agonizam. E
o responsável por esse fato alarmante, como sempre, é a própria vitima, que
pela imprevisão, pelo abuso do poder, pelo apego às comodidades institucionais,
deixou-se levar na ilusão de sua indestrutibilidade. As próprias Religiões
cavaram a sua ruína no desenrolar do processo histórico. Acomodadas em sua
superioridade, confiantes no privilégio de sua origem e natureza sobrenaturais,
recusaram-se a integrar-se na cultura natural, marginalizando-se a si mesmas. A
evolução cultural alargou progressivamente o fosso entre a Cultura e a
Religião, tornando irreversível a situação das instituições religiosas. Assim,
dialeticamente, o conceito arbitrário do sobrenatural, que era o fundamento de
sua segurança, tornou-se o motivo de sua decadência.
No Ocidente, os primeiros sinais da crise religiosa
contemporânea surgiram em plena Idade Média, com o episódio trágico-romântico
de Abelardo, prenunciando a Idade da Razão. Essa nova fase, que se iniciou com
o Renascimento, traria a revolução cartesiana, Rousseau,
Chaumette e o Culto da Razão na
Revolução Francesa, e posteriormente Augusto Comte
e a Religião da Humanidade. No ano da
morte de Augusta Comte, em
1857, Denizard Rivail iniciaria na França o movimento da Fé Racional. Assim, a
França, que centralizava o processo cultural no Mundo Moderno, apresenta uma
seqüência de tentativas para a integração da Religião no sistema cultural em
desenvolvimento, sempre rejeitadas pela soberania eclesiástica apoiada no
conceito do sobrenatural. Paralelamente aos movimentos renascentistas da
França, desencadeou-se na Alemanha, no Século XVI, o movimento da. Reforma,
iniciado por Lutero.
No Oriente a reação às religiões tradicionais foi mais
lenta e tardia, menos precisa e definida, com menores conseqüências, que só se
acentuaram no Século XIX. Nem por isso deixou de produzir efeitos que se
intensificaram no decorrer desse século até o presente sob influências
ocidentais. Na Rússia, sob a inspiração francesa de Rousseau, Tolstoi
promoveu a revolução religiosa do Século XIX, na linha luterana de volta ao
Cristianismo Primitivo, fazendo uma nova tradução dos Evangelhos em sentido
místico-racional. Todos esses movimentos revelam a insatisfação cultural no tocante à soberania das
Religiões, fundada no conceito do sobrenatural, que as mantinham desligadas do
processo cultural. Ainda no Século XIX a obra de Renan, na França, assinalava a
tendência do espírito francês, no plano da História do Cristianismo, no sentido
de estabelecer a verdade sobre os primórdios da Religião dominante e retirá-la
do campo suspeito do sobrenatural.
Temos, nesse esboço de um vasto panorama histórico, a
visão objetiva dos processos que vinham preparando, desde os fins do milênio
medieval, a derrocada das Religiões. Em nosso século, o desenvolvimento
acelerado das Ciências, a laicização do Estado e da Educação, a desagregação da
família, a expansão cultural e a rápida modificação dos costumes e do sistema
de vida pelo impacto da Tecnologia - abrangendo praticamente todo o mundo -
fortaleceram a concepção pragmática e materialista, dando o golpe de
misericórdia no sobrenatural e nos sistemas religiosos que nele se apóiam. A
etiologia da decadência das Religiões torna-se palpável. Seria simples tolice
querer negá-la.
Não obstante, o sentimento religioso do homem não foi
aniquilado. Pelo contrário, ele subsiste e vem sendo considerado,
particularmente nos países da área dominada pelo Marxismo, como um resíduo do
passado que terá de desaparecer totalmente com o avanço irresistível da
cultura. A própria URSS, que se desmandou em campanhas violentas contra a
Religião, viu-se obrigada a fazer concessões significativas ao chamado ópio do
povo. Nos Estados Unidos o Pragmatismo de William James e o Instrumentalismo de
John Dewey temperaram a situação permitindo urna espécie de trégua na qual
segundo Rhine, as concepções antípodas do homem - a religiosa e a cientifica -
podem encontrar-se ao pé do leito de um moribundo sem estardalhaço. Mas as
atrocidades da II Guerra Mundial geraram na Alemanha um movimento de reforma
radical das Teologias tradicionais, que se projetou nos Estados Unidos e vem
penetrando sutilmente em toda a América, através de traduções de livros dos
novos teólogos, que anunciam a morte de Deus e pregam a novidade do
Cristianismo Ateu.
Os teólogos mais uma vez se enganam. A teoria da Morte de
Deus, que eles procuram inutilmente explicar como um acontecimento atual, do
nosso tempo, nunca se verificou nem pode verificar-se. Deus não é um ser nem é
mortal, porque o Ser Absoluto, o Bem, segundo Platão, a Idéia Suprema de que
derivam todas as idéias e, portanto, todas as coisas e todos os seres. Os
teólogos da chamada Teologia Radical da Morte de Deus, e seus companheiros de
outros ramos teológicos subseqüentes, sofrem de um processo de alucinação por
transferência. Quem está morrendo não é Deus, são eles mesmos e suas Teologias,
eles e as Religiões formalistas e dogmáticas.
A concepção nova de Deus, que nasce dos escombros da
concepção antropomórfica do passado, é a de uma Inteligência Cósmica que
preside a toda a realidade possível. Os cosmonautas soviéticos, depois de umas
voltas ao redor do grão de areia da Terra, declaram eufóricos que Deus não
existe, pois não tiveram o prazer de encontrá-lo nos microscópicos subúrbios do
nosso planeta. Fizeram como o estudante de Eça de Queiroz, em A Cidade, que, para provar a inexistência de Deus, tirou o seu
relógio-patacão do bolso do colete, diante de colegas, e deu o prazo de alguns
minutos para que Deus o fulminasse. Como não foi fulminado, declarou que estava
provada a inexistência de Deus e guardou o patacão no bolso. Essas piadas
servem apenas para mostrar-nos o estado de ignorância em que ainda nos
encontramos. E para provar, isso sim, que estamos mortos em nossa estupidez
diante da grandeza do Cosmos. Dizer que Deus morreu é como dizer que a vida se
extinguiu. O fato de estarmos vivos e fazermos essa afirmação já prova o
contrário.
Os teólogos radicais são tão radicais que não admitem a
única explicação possível para a sua teoria da Morte de Deus. Essa explicação
seria a de que o Deus convencional das religiões morreu, coma idéia hoje
inaceitável. Mas eles se opõem a isso e dão explicações que ninguém pode
entender, pois só entendemos o que é racional. O problema é mais sério do que
pensam os teólogos, que fazem piada dizendo colocar o Cristo provisoriamente no
lugar de Deus, do que resulta o Cristianismo Ateu, última novidade das
Religiões no Século XX.
Apesar de tudo isso, verifica-se que o que eles pretendem
é colocar o problema da existência de Deus em termos mais acessíveis à razão.
Essa pretensão coincide com
os objetivos do pensamento francês,
na seqüência histórica mencionada acima. É pena que esses teólogos atuais não
tenham a facilidade de expressão e a lucidez que caracterizam o pensamento
francês. Se entre eles houvesse um teólogo gaulês, certamente lhes explicaria
que o conceito celta de Deus devia satisfazê-los. Os celtas, que eram um povo
monoteísta como os hebreus e viveram na Antiguidade, poderiam corrigir os
teólogos atuais e dar lições de lógica às Religiões em agonia. Foram
considerados bárbaros e sofreram na pele a barbárie dos civilizados romanos,
mas Aristóteles afirmou que eles eram o único povo filósofo do mundo.
De todo o exposto parece evidente que a agonia atual das
religiões nada tem a ver com a Religião. Sim, porque a Religião é uma das características
fundamentais da natureza humana. Parodiando a teoria aristotélica do animal político, podemos dizer que o homem é um animal
religioso. A falsa teoria do espanto do mundo como origem da Religião, que até
mesmo Van Der Leuw ainda sustenta, não pode manter-se em pé diante da prova
antropológica de que nunca existiu no mundo um povo ateu, desde os homens da
caverna até os nossos dias. A idéia de Deus é inata no homem, como Descartes
afirmou, depois de encontrá-la no fundo misterioso do cógito. E uma idéia
evidente por si mesma e indispensável à compreensão de nós mesmos e do mundo.
Certas pessoas opiniáticas, muito ciosas de si mesmas,
costumam dizer que Deus não existe porque ninguém pôde provar a sua existência.
A própria Ciência ensina que a causa se prova pelo efeito. Basta-nos olhar uma
flor ou um
grão de areia para sabermos que Deus
precisa existir, que existe necessariamente. O que não podemos aceitar é o Deus
das religiões, porque esse Deus - ilógico e absurdo, como dizia Aristides Lobo
- pertence a um passado remoto em que a humanidade necessitava dele. A essência
da Religião constitui-se de apenas um núcleo e uma partícula, como o átomo de
hidrogênio. O núcleo é a idéia de Deus e a partícula o sentimento religioso. A
Religião verdadeira, que jamais agonizou e nunca morre, tem nesse átomo simples
e puro a sua raiz simbólica.
Mas, para que a Religião possa desempenhar livremente o
seu papel fundamental na evolução humana, é necessário que a reintegremos na
Cultura Geral, como uma de suas áreas mais importantes. Para livrar o
Conhecimento da dispersão produzida pelas especializações cientificas, foi
necessário criar-se a Filosofia da Ciência. Para livrar a Religião da
pulverização sectária é indispensável libertá-la do formalismo dogmático, do profissionalismo
religioso, do fanatismo igrejeiro. A agonia das religiões é determinada pela
asfixia das estruturas antiquadas, do irracionalismo baseado no conceito do
sobrenatural e da Revelação Divina. Os dois tipos de religião analisados par Bergson, o social e o individual, devem fundir-se na síntese da
Religião do Homem, que ressalta historicamente das aspirações francesas e
mereceu do poeta bengali Rabindranath Tagore um estudo lúcido e lírico. O
Conhecimento é um todo, é global. Teoria e prática são verso e reverso de um
mesmo processo. O homo
sapiens e o homo faber são uma e a mesma coisa: o homem. As especializações são
simples formas de divisão do trabalho, de acordo com as diferenciações de
tendências individuais. Ciência e Técnica, Filosofia e Moral, Metafísica e
Religião são apenas divisões metodológicas do campo do Saber, formas
disciplinares do pensamento e da ação.
A Era da Comunicação de Massa, que segundo Mcluhan, fez da
Terra uma aldeia global, estourou o mundo chinês do passado, de muralhas e
mandarinatos. A dicotomia kantiana, que negou a impossibilidade do conhecimento
extra-sensorial, foi superada pelas conquistas físicas e psicológicas de hoje.
O sobrenatural mudou de nome, é apenas o natural desconhecido que a
investigação científica vai rapidamente integrando no Conhecimento Global da
realidade una. Temos de adaptar-nos às condições novas e às novas dimensões do
homem e do mundo. As próprias igrejas estão abrindo as portas dos conventos e
dos mosteiros para não morrerem asfixiadas, as Ciências rompem com o passado, a
Filosofia se livra dos sistemas para enfrentar com desenvoltura a problemática
do pensamento, os tabus são esmigalhados pelo homem novo, os mestres e gurus se
fazem discípulos da única fonte real de sabedoria que é a Natureza. O
sacerdócio é uma espécie em extinção. Os teólogos foram confundidos por Deus,
que não quis entregar-se em suas mãos inábeis.
Se quisermos salvar a Religião, nesse maremoto das
transformações que afligem os passadistas, façamos urgentemente a liquidação das religiões em agonia e mandemos os seus artigos de fé,
seus ícones e suas medalhas para o Museu do Homem, como simples testemunhos de
um tempo morto.
Tudo isso é aflitivo para os espíritos rotineiros e
acomodatícios, como a mensagem cristã era escândalo para os judeus e espanto
para gregos e romanos. Mas os espíritos flexíveis, corajosos, lúcidos,
empenhados na busca da Verdade - essa relação direta do pensamento com o real -
não se atemorizam, antes se rejubilam com a libertação do homem. Esta é a
verdade flagrante do momento que vivemos: o homem se liberta de seus temores,
da ilusão de sua fragilidade existencial, do confinamento planetária, do
embuste e da hipocrisia para viver a vida como ela é, na plenitude das suas
potencialidades corporais e espirituais.
O homem se emancipa e toma consciência da sua natureza
cósmica. Diante dele está o futuro sem limite, a imortalidade dinâmica e
demonstrável que se opõe ao conceito limitado da imortalidade estática e
hipotética. Sua herança não é o pecado nem a morte, mas a vida em nova
dimensão.
CAPÍTULO II - RELIGIÃO COMO FATO SOCIAL
O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise
universal, determinada por mudanças rápidas em todos os campos de sua
atividade, defronta-se com um grave problema subjetivo: ser ou não ser
religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, sua
natureza, sua significação para o comportamento humano, seus efeitos na
dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas econômicas e
administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais
especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias
que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos
conflitos aparentemente insanáveis.
Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento, a
Religião se transformou numa questão opinativa. Para os materialistas e ateus é
apenas um resíduo do passado supersticioso; para os pragmatistas, uma questão
de conveniência; para os espiritualistas, um problema vital, do qual depende a
própria sobrevivência da Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas
áreas, geram a desconfiança e a indiferença no seio das massas populares,
desprovidas de elementos para uma avaliação do problema, e muito menos para a
sua equação.
O que hoje se convencionou chamar de Ciência da Religião,
abrangendo vários aspectos da questão religiosa em diversas perspectivas
cientificas, fora do campo religioso, apresenta-se como análise fria do
processo religioso, com base nos dados objetivos da História. Mesmo a
Psicologia das Religiões vê-se obrigada a pairar no plano das estruturas das
escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenômeno religioso, sob pena
de perder a sua qualificação científica.
Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no tocante
ao problema da vida, cuja solução se busca no pressuposto de que o impulso
vital se origina no campo dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte
de toda energia - apesar da comprovação cientifica atual de que é o produto da
acumulação energética - mantém-se na posição de geradora da vida. Assim também
se busca o segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na sua
estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do
homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o
pensamento não seriam mais do que epifenômenos, efêmeras eclosões do fenômeno
orgânico, destinadas a desaparecer com este.
Não pretendo promover uma revolução copérnica no assunto,
mas apenas mostrar, se possível, a conveniência de uma mudança de posição.
Basta encararmos a Religião coma um fato social, segundo a tese de Durkheim,
sem nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e funcionais do fato em
si, para que as perspectivas da análise se tornem mais amplas e flexíveis.
Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no plano
histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo étnico
dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova
sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no
desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de
outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se
distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica
tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o
impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades
mitológicas. Abraão, Isaac e Jacó assumiram a direção do clã e o levariam,
através do Egito, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopéia dos
relatos bíblicos.
Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados que
provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o elemento étnico,
determinante do agrupamento social; segundo, o elemento mítico, determinante da
nova orientação religiosa. Este último não se mostra como subjetivo, mas
caracteriza-se pela sua objetividade. É
a intervenção ativa de influências
exógenas na vida do clã, provenientes de manifestações concretas de entidades
espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretação
psicológica dos fatos, que só aceitam as manifestações espirituais como de
ordem subjetiva, os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no campo
das Ciências Psíquicas, atualmente confirmadas pelas pesquisas
parapsicológicas, com a anterior comprovação das pesquisas metapsíquicas,
mostram que a intervenção espiritual poderia ter sido objetiva, segundo a
descrição dos relatos bíblicos.
Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta, que
corresponde a milhares de outras verificadas em todas as latitudes do planeta,
podemos chegar à conclusão de que as religiões
se originam de uma conjugação de
fatores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído da análise
honesta do fato social, sem que se pratique uma violência contra a realidade
mundialmente comprovada. Os fenômenos paranormais aparecem então como o
elemento básico do fato social a que chamamos religião. E não é possível, nas
condições atuais do desenvolvimento das Ciências, mesmo no plano da Física,
opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas
científicas evidentes de sua impossibilidade.
Assim, a colocação do problema religioso de maneira
opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou espiritualistas, nesta
altura de nossa evolução cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia
científica. Não obstante, o desenvolvimento das religiões e sua
institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de suspeita aos
espíritos objetivos, que pretendem analisá-las no seu estado atual. Nesse
processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, em
suas manifestações puramente subjetivas e não raro de ordem patológica.
Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem conhecidos, que
determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações institucionais,
cujos objetivos são característicos dos interesses sociais. Posições
psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses políticos,
preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo
pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de institucionalização das
religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte em
que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e
precisar a importância que tiveram no processo histórico.
As religiões se dividem em duas categorias fundamentais:
as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das
classificações existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de analise. A
religião natural, neste caso, é a que
surge espontaneamente, entre os povos
primitivos ou civilizados, a
partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado,
em momentos de crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião da
Humanidade, de Augusto Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos,
apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação
de distorções havidas no processo de
institucionalização. A religião
individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior
de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do
plano social e uma libertação total de todo condicionamento institucional. Não
obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se
insere, embora individualmente, não escapa ã classificação geral de fato
social.
Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o que se
pode entender por religião como fato social.
Não é apenas um fato isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade, mas um
fato que brota da realidade social como expressão de sua própria alma, de suas
tendências e suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que engloba,
nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os elementos
básicos do todo social concreto e os vetores ou direções do psiquismo coletivo.
Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do fato social da religião,
todas as formas de encarar e interpretar o fenômeno religioso nos levarão
fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só poderão
aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do problema.
Essa complexidade do fenômeno religioso parece explicar de
maneira mais profunda a marginalização cultural a que a Religião foi relegada a
partir do início do mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras,
abastardada pelo profissionalismo clerical,
transformada em ópio do povo e
sustentáculo de situações sociais profundamente injustas, catalogada entre os
produtos espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à condição
de promotora de guerras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada
como arma poderosa nas mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada
pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a Religião se constituiu em
barreira de todo o progresso cultural e foi excluída do mundo da Cultura como
indesejável.
Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas
formais das religiões e à conotação vital dos seus princípios com as exigências
naturais da consciência humana, sua posição no processo cultural moderno e
contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. Sua exclusão não pode ser
total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo materialismo ideológico.
Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa estranha mistura de
desconfiança e temor, encontrou na
interpretação pragmática, utilitária,
de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos
meios culturais da atualidade.
Por outro lado, sua presença nos meios culturais é sempre
conflitiva. Não há possibilidade de harmonização perfeita entre cultura religiosa
e cultura secular, a não ser no plano da religião individual, que rompe o
envoltório formal das religiões sociais e é encarada por estas como uma
aberração. O resultado mais negativo dessa situação conflitiva foi o
aparecimento de outro mal necessário, a implantação mundial da Educação Leiga,
que frustrou as possibilidades de reelaboração da experiência religiosa pelas
novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de
ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa
posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções
catastróficas a crise das religiões em nossos dias.
Felizmente a natureza vital da Religião, as suas profundas
raízes ônticas (e não apenas ontológicas) e a sua inelutável condição de
síntese de toda a realidade social, determinaram o aparecimento de uma síntese
cultural em que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação institucional
das religiões, ressurge entranhada na substância do progresso cultural. Não
podemos tratar da crise das religiões em nosso tempo sem enquadrá-la nas
dimensões desse fato cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de
maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no formalismo cultural do
século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à recomendação cartesiana
contra o
preconceito e a precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial a
posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade histórica (simplesmente
incontestável) com a conflitiva realidade cultural
dos nossos dias com as perspectivas
científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte realizadas,
asseguram a validade desta interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não
seria possível desprezar a evidência dos fatos e das conotações de princípios
filosóficos e científicos com o panorama real, objetivo, das mudanças que se
verificam dia-a-dia: aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas
normas convencionais. Acima das convenções transitórias e das conveniências de
acomodação ao impreciso espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.
Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os
conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das atividades humanas.
Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as instituições. As religiões
até ontem mais sólidas e poderosas agonizam em seus leitos de riquezas
milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis, como estrelas
fixas do pensamento religioso, estremecem com a unidade pitagórica para
desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do
espaço. O homem se equilibra nervoso e inquieto, na fímbria tenuissima da
crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos abismos do
microcosmo e do macrocosmo.
Não é essa hora de concessões à ignorância (ilustrada ou
não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do crepúsculo. Estamos na
hora da verdade, das proposições claras e precisas, da posição destemida de
alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos
sentidos e além dos sentidos, através da intuição e da percepção
extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural estão sendo
mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as contemporizações
tranqüilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos conflitos
atuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face a face.
Encarando a crise das religiões como um processo
sócio-cultural integrado na realidade imediata, não podemos escamotear a
verdade das soluções que já foram propostas para ela com grande antecedência
histórica. Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante conhecido dos
estudiosos da História. Só há uma novidade na crise atual, a violenta ampliação
das dimensões da crise, que se abre para visões dantescas do passado e do futuro.
No passado, deparamos de novo com as regiões infernais percorridas pelo gênio
de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criação artística de Gustave
Doré. Não há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos arrebata, pelas mãos
de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e
as constelações já brilham aos nossos olhos.
CAPITULO III - A EXPERIÊNCIA DE DEUS
Sacerdotes e pastores, homens de fé, sinceros e bons
procuraram demonstrar-me que as religiões não estão em crise. Sustentaram que a
crise é do homem e não das instituições religiosas. As religiões continuam
vivas e atuantes no coração dos crentes - disseram - mas os homens mundanos,
que se entregam à loucura do século, conturbam a paisagem terrena. E necessário
que os homens busquem a Deus, que tenham a experiência de Deus. E essa
experiência só é possível quando o homem se desliga do mundo para ligar-se a
Deus através da oração e da meditação. Falaram de milhares de pessoas que, no
torvelinho da vida contemporânea, procuram todos os dias, a horas certas, o
refúgio dos templos ou de um quarto solitário para tentar um encontro pessoal
com Deus. Muitas dessas pessoas já conseguiram a audiência secreta com o Todo
Poderoso. São criaturas felizes, iluminadas pela graça divina, que sustentam
com sua fé inabalável a continuidade das religiões e garantem a sua expansão.
É bom que existam pessoas assim, dedicadas vestais que
zelam pelo fogo sagrado. São os últimos abencerrages do formalismo religioso,
flores de estufa cultivadas na penumbra das naves sagradas. Cuidam da fé como
jardineiros especializados que cultivam uma espécie vegetal extremamente
delicada. Acreditam que os seus canteiros floridos darão sementes para
semeaduras ilimitadas por toda a superfície da Terra. Não percebem essas almas
eleitas que cultivam exclusivamente a si mesmas, ocultam na aparência piedosa
seus conflitos profundos e nada mais fazem do que fugir da realidade escaldante
da vida. Não escondem a cabeça na areia, pois mergulham de corpo inteiro no
sonho egoísta da salvação pessoal.
As práticas místicas do passado provaram mal a sua
eficácia. Do Oriente ao Ocidente, multidões de gerações de crentes desfilaram
sem cessar, através dos milênios, pelos templos de todas as religiões,
convictas de haverem alcançado a salvação pessoal, enquanto hordas ferozes e
exércitos em guerras de extermínio brutal cobriam o mundo de ruínas, cadáveres
inocentes, sangue e lágrimas. Os que ouviram Deus em audiência particular não
se recusaram a pegar em armas para estraçalhar seus irmãos considerados como
réprobos e infiéis. Santos Bispos e Padres, pastores calvinistas, crentes
populares, fidelíssimos e humildes, não acenderam suas lâmpadas votivas para
iluminar as noites trevosas. Preferiram acender fogueiras inquisitórias e,
quando o sol raiava, submeter piedosamente os hereges à morte redentora do
garrote-vil, réplica religiosa à guilhotina profana.
Lembro-me do episódio histórica de Jerônimo de Praga.
Depois de haver assistido, pelas grades da prisão, seu mestre João Huss ser
queimado vivo em praça pública, foi também glorificado com a graça especial de
uma fogueira semelhante. No momento em que as chamas começavam a iluminar a sua
figura estranha, caridosamente amarrada ao palanque do suplício (para salvação
de sua alma rebelde) viu uma pobre velhinha aproximar-se da fogueira com uma
acha de lenha e atirá-la ao fogo. Era a sua contribuição piedosa para a
salvação do ímpio. Jerônimo exclamou apenas: "Santa simplicidade."
Pouco depois estava reduzido a cinzas, para glória de Deus, e suas cinzas foram
lançadas ritualmente nas águas do Reno.
Todas as formas de culto, todos os ritos, todos os
sacramentos, todas as cerimônias religiosas, todos os cilícios foram empregados
nos milênios sombrios do fanatismo religioso, para a salvação da Humanidade. E
eis que agora chegamos a um tempo de descrença generalizada, de materialismo e
ateísmo oficializados, de hipocrisia pragmática erigida em sustentáculo das
religiões fracassadas. Deus falava diretamente com seu servo Moisés no deserto,
falava-lhe cara a cara, ordenando matanças coletivas, genocídios tenebrosos,
destruição total dos povos que impediam o acesso dos hebreus à terra dos
cananeus, que seria tomada a fio de espada. Deus continua falando em particular
a seus servos em nossos dias, para a sustentação das igrejas, enquanto o Diabo
não perde tempo e alicia milhões de almas perdidas para as práticas do
terrorismo, para a matança de crianças e criaturas inocentes, para assaltos e
estupros em toda a face da Terra.
A experiência de Deus sustenta os crentes privilegiados e
sustenta suas igrejas salvacionistas. E enquanto não chega a salvação,
católicos e protestantes matam-se gloriosamente nas lutas fratricidas da
Irlanda, em plena era das mais brilhantes conquistas da inteligência humana.
Que estranha experiência é essa, que não revela os seus frutos, que não prova a
sua eficácia? Deus estaria, acaso, demasiado velho para não perceber a
inutilidade dos seus métodos de salvação pessoal em audiências privadas? E os
seus servidores, os clérigos investidos de autoridade divina para implantar na
Terra o Reino do Céu, porque não avisam o velho monarca da inutilidade
milenarmente provada de sua técnica de conta-gotas?
Não seria mais certo tentarmos a revisão dos conceitos
religiosos que nos deram a herança de tantos fracassos e tão espantosa expansão
do materialismo e do ateísmo no mundo? Todas as grandes religiões afirmam a
onipresença de Deus no Universo. Não obstante, todas consideram o mundo (criado
por Deus) como
profano, região em que as trevas dominam e o Diabo faz a incessante caçada das
almas de Deus. É curioso lembrar que nos tempos mitológicos o mundo era considerado
sagrado, a vida uma bênção, os prazeres naturais e as leis da procriação eram
graças concedidas pelos deuses aos homens. O monoteísmo judaico, desenvolvido
pelo Cristianismo, impregnou o mundo com a onipresença de Deus e o mundo
tornou-se profano. Se Deus está presente num grão de areia, numa folha de
relva, num fio dos nossos cabelos e numa pena das asas de um pássaro, como,
apesar dessa impregnação divina, o homem se defronta com a impureza do mundo? Por que estranho
motivo necessitamos de ritos especiais para purificar a inocência de uma
criança, se Deus está presente no seu olhar puro e límpido, no seu choro, na meiguice
do seu rostinho ainda não marcado pelo fogo das paixões terrenas? E porque
precisa o cadáver de recomendação, com aspersão de água benta, se a
ressurreição dos mortos se faz, como ensina o Apóstolo Paulo na I Epistola aos
Coríntios e como Jesus exemplificou na sua própria morte, no corpo espiritual e
não no corpo material?
São esses e outros muitos problemas acumulados nos erros
milenares dos teólogos que levam o homem contemporâneo à descrença e ao
materialismo, ao ateísmo e ao niilismo. São todos esses erros que colocam as
religiões em crise e as levarão à morte sem ressurreição. Considerando-se, porém, esse estranho panorama religioso da Terra numa perspectiva
histórica, à luz da razão, compreende-se facilmente que os erros de ontem, até
hoje sustentados pelas religiões, foram úteis e necessários nos tempos de
ignorância, em que os problemas espirituais não podiam ser colocados em termos
racionais. Há justificativas válidas para o passado religioso, mas não
justificativas possíveis para o seu presente contraditório e absurdo. A tese,
mais do que absurda, do Cristianismo Ateu, com que teólogos rebeldes procuram
hoje remendar as vestes esfarrapadas das igrejas, só vem acrescentar maior
confusão ao momento de agonia das religiões envelhecidas.
O problema da experiência de Deus poderia ser resolvido
com um mínimo de reflexão. Se Deus está em nós, e por isso somos deuses em
potência, segundo a própria expressão evangélica, porque necessitamos de uma
busca artificial de Deus para termos a experiência da sua realidade? Se fomos
criados por Deus e se Deus pôs em nós a sua marca, como afirmou Descartes - a idéia de
Deus em nós, que é inata - já não trazemos, ao nascer, a experiência de Deus? E se, no desenvolver da vida
humana, o homem nada mais faz do que cumprir um desígnio de Deus, assistido
pelos Anjos Guardiões, porque tem ele de buscar a Deus através de uma prática
artificial e egoísta, procurando preservar-se sozinho num mundo em que a
maioria se perde irremediavelmente? Moisés supunha ter ouvido o próprio Deus no
Sinai, mas
o Apóstolo Paulo explicou que Deus lhe falara através de mensageiros, que são
anjos. As pessoas que buscam hoje a experiência de Deus em audiência privada
serão mais dignas do que Moisés, não estarão sujeitas a ouvir a voz de um anjo,
que tanto pode ser bom quanto mau, pois as próprias igrejas admitem que os
anjos decaídos andam
à solta pela Terra procurando roubar para o Inferno as almas de Deus? Quem
estará livre, na sua piedosa tarefa de salvar-se a si mesmo, de ser tentado
pelo Diabo, que tentou o próprio Jesus nas suas meditações solitárias no
Deserto?
As práticas místicas do passado não servem para a era da
razão, em que nos encontramos na antevéspera da era do espírito. Orar e meditar
é evidentemente um exercício religioso respeitável e necessário em todos os
tempos. A oração nos liga aos planos superiores do espírito e a meditação sobre
questões elevadas desenvolve a nossa capacidade de compreensão espiritual. Mas
o dogma da experiência de Deus através de um pretensioso colóquio direto e
pessoal com a Divindade é uma proposição egoísta e vaidosa. Se Deus é o
Absoluto e nós somos relativos, a humildade não nos aconselha a ter mais
cautela em nossas relações pessoais com a Divindade? São muitos os casos de
perturbações mentais, de obsessões perigosas, de lamentáveis desequilíbrios
psíquicos decorrentes de exageradas pretensões das criaturas humanas no campo
das práticas religiosas. A História das Religiões é marcada por terríveis
experiências nesse sentido. Basta lembrarmos os casos de perturbações coletivas
em conventos e mosteiros da Idade Média, onde os excessos de misticismo
transformaram criaturas piedosas em vítimas de si mesmas, sujeitando-as não
raro à própria condenação da igreja a que pertenciam e a que procuravam servir.
Os dogmas de fé, que formam a estrutura conceptual das
igrejas, são as pedras de tropeço do seu caminho evolutivo. Partindo do
princípio de que a Revelação Divina é a própria palavra de Deus dirigida aos
homens, as igrejas se anquilosaram em seus dogmas intocáveis, pois a exegese
humana não poderia alterar as ordenações ao próprio Deus. Na verdade, a
alteração se verificou em vários casos, apesar disso, mas decisões conciliares
puseram a última pá de cimento nos erros cometidos. As estruturas eclesiásticas
tornaram-se rígidas e as igrejas confirmaram, no seu espírito, a ossatura de
pedra de suas catedrais. Vangloriam-se ainda hoje da sua imutabilidade, num
mundo em que tudo evolui sem cessar. Os resultados dessa atitude ilusória e
pretensiosa só poderiam ser nefastos, como vemos atualmente no lento e doloroso
processo de agonia das religiões. Incidiram assim no pecado do apego, contra o
qual os Evangelhos advertiram os homens. Apegaram-se de tal maneira à própria
vida, que perderam a vida em abundância que Jesus prometeu aos que se
desapegassem. As liberalidades atuais chegaram demasiado tarde.
A palavra dogma é grega e seu sentido original é opinião.
Adquiriu em filosofia e religião o sentido de princípio doutrinário. Nas
Escrituras religiosas aparece algumas vezes com o sentido de édito ou decreto
de autoridades judaicas ou romanas. Entre o dogma religioso e o filosófico há
uma diferença fundamental. O dogma religioso é de fé, princípio de fé que não
pode ser contraditado, pois provém da Revelação de Deus. O dogma filosófico é
racional, dogma de razão, ou seja, princípio de uma doutrina racionalmente
estruturada. O sentido religioso superou os demais por motivo das conseqüências
muitas vezes desastrosas da sua rigidez e imutabilidade. Se falarmos, por exemplo,
em dogmática, esse termo é geralmente entendido como designando a estrutura dos
dogmas fundamentais de uma religião. Por isso, a adjetivação de dogmática, que
implica também o masculino, como nas expressões: pessoa dogmática, posição
dogmática ou homem dogmático, significa intransigência de opiniões. O mesmo
acontece com o substantivo dogmatismo, que designa um sistema de opiniões
intransigentes.
Estas influências religiosas na semântica revelam a
intensidade da rigidez a que as igrejas se entregaram, através dos séculos e
dos milênios, na defesa da suposta eternidade de seus princípios básicos.
Temos, portanto, no dogma de fé, um dos motivos fundamentais da crise das
religiões em nossos dias. No Espiritismo, como em todas as doutrinas
filosóficas, existem dogmas de razão, como o da existência de Deus, o da
reencarnação, o da comunicabilidade dos espíritos após a morte. Muitos adeptos
estranham a presença dessa palavra nos textos de uma doutrina que se afirma
antidogmática, aberta ao livre exame de todos os seus princípios. São pessoas
ainda apegadas ao sentido religioso da palavra. Não há nenhuma razão para essa
estranheza, como já vimos, do ponto de vista cultural.
O problema da religião no Espiritismo tem provocado
discussões e controvérsias infindáveis, porque essa doutrina não se apresenta
como religião no sentido comum do termo. Allan Kardec, discípulo de Pestalozzi,
adotava a posição de seu mestre no tocante à classificação das religiões.
Pestalozzi admitia a existência de três tipos de religião: a animal ou
primitiva, a social e a espiritual. Mas recusava-se a chamar esta última de
religião, dando-lhe a designação de moralidade. Isso porque a religião superior
ou espiritual, segundo ele, só era professada individualmente peia criatura que
superava o ser social e desenvolvia em si o ser moral. Kardec recusou-se
a falar em Religião Espírita, sustentando que o Espiritismo é uma doutrina
científica e filosófica, de conseqüências morais. Mas deu a essas conseqüências
enorme importância ao considerar o Espiritismo como desenvolvimento histórico
do Cristianismo, destinado a restabelecer a verdade dos princípios cristãos,
deformados pelo processo natural de sincretismo-religioso que originou as
igrejas cristãs.
Essa posição espírita manteve a doutrina e o movimento
doutrinário em posição marginal no campo religioso. Para os espíritas,
entretanto, a posição da doutrina não é marginal, mas superior, pois o
Espiritismo representaria o cumprimento da profecia evangélica da Religião em
espírito e verdade, que se desenvolveria sob a égide do próprio Cristo. A
religião espírita não se organizou em forma de igreja, não admite sacramentos
nem admitiu nenhuma forma de autoridade religiosa de tipo sacerdotal. Não há
batismo, nem casamento religioso no Espiritismo, nem confissões ou
indulgências. Todos esses formalismos são considerados como de origem pagã e
judaica. Entende-se o batismo como rito de iniciação, que Jesus substituiu pelo
batismo do espírito, sendo este considerado como a iniciação no conhecimento
doutrinário, feita naturalmente pelo estudo da doutrina, sem nenhum ato ritual.
Admite-se também que o batismo do espírito, segundo o texto do Livro de Atos dos Apóstolos sobre a
visita de Pedro à casa do centurião Cornélius, no porto de Jope, pode
completar-se, nos médiuns, quando se verifica espontaneamente, com o
desenvolvimento da mediunidade.
Essa posição espírita no campo religioso causou numerosas
dificuldades aos espíritas no tocante às relações de instituições doutrinárias
com os poderes oficiais, particularmente para a declaração de religião em
documentos oficiais, para o resguardo dos direitos escolares em face do ensino
religioso, para a declaração de religião nos recenseamentos da população, até
que medidas oficiais reconheceram esses direitos. Em compensação, o Espiritismo
ficou livre das conseqüências da crise religiosa, que não o atingiram.
Demonstrarei nos capítulos seguintes a posição da Religião Espírita em face
dessa crise, que é evidentemente uma posição de vanguarda. Sua contribuição
para a racionalização dos princípios religiosos, para a reintegração da
Religião no plano cultural, particularmente no tocante aos problemas
científicos da atualidade, é realmente substancial. No campo filosófico a
posição espírita é também vanguardeira, pois desde o século passado sua
filosofia se apresenta como livre dos prejuízos do espírito de sistema,
conservando-se aberta a todas as renovações que decorrem de descobertas
cientificamente comprovadas. Livre da dogmática religiosa e da sistemática
filosófica, apoiada inteiramente na pesquisa cientifica, a doutrina está de
fato a cavaleiro nas crises da atualidade.
CAPÍTULO IV - EXPERIÊNCIA NO TEMPO
O homem realiza a experiência de Deus no tempo, ao longo
de sua evolução natural. Não se pode ter uma experiência artificial de Deus em
alguns minutos ou algumas horas de meditação. Essa experiência é natural - e de
natureza vital - faz parte integrante da vida e da existência humana. Podemos
lembrar a expressão de Descartes: A idéia de Deus no homem é a marca do obreiro
na sua obra. Descartes foi o precursor de Kardec, como João Batista o foi do
Cristo. Temos, assim, uma curiosa correlação histórica entre o advento do
Cristianismo e o advento do Espiritismo, que se completa em numerosos outros
aspectos.
Lembrando a teoria da reminiscência em Platão, em que as
almas nascem na Terra marcadas pela recordação do mundo das idéias,
compreenderemos mais facilmente a existência da idéia inata de Deus no homem.
Essa idéia inata não é apenas marca, mas também o marco inicial e o pivô em
torno do qual se processa todo o desenvolvimento espiritual da criatura humana.
Podemos acompanhar esse processo desde a adoração dos elementos naturais pelo
homem Primitivo (a partir da litolatria, adoração da pedra e de outras
formações minerais) até à eclosão do monoteísmo, com a idéia do Deus Único, que
Kant considerou o mais elevado conceito formulado pela mente humana. E vemos
então que a idéia de Deus representa, histórica e antropologicamente, uma
espécie de marca-passo de toda a evolução do homem.
No episódio do Cogito, da cogitação de Descartes sobre a
realidade ou não da existência, temos o momento em que ele descobre, no mais
profundo de si mesmo, uma idéia estranha, que é a da existência de um Ser
Absoluto e portanto absolutamente perfeito. Essa idéia não podia ter sido
originada pelas suas experiências de ser relativo e imperfeito. Descartes a
considerou estranha porque só poderia vir de fora dele, da existência real
desse Ser Absoluto. Descobria assim que tivera uma experiência de Deus,
inteiramente independente de todas as suas experiências terrenas.
A importância desses fatos históricos e culturais foi
negligenciada pela cultura leiga que se desenvolveu na Renascença e deu forma
ao mundo moderno. O predomínio crescente das conquistas materiais da
Civilização Ocidental asfixiou essas conquistas do espírito. O homem se
esqueceu do significado desses fatos, desses episódios culminantes da cultura
humana, e as religiões dogmáticas transformaram a idéia de Deus em simples
crença desprovida de raízes experimentais. Coube ao Espiritismo restabelecer a
verdade e colocar a
experiência de Deus no seu devido lugar, no vasto
panorama da evolução da Humanidade. Trata-se da mais importante e profunda
experiência do homem, uma experiência vital que deverá levá-lo à compreensão da
sua verdadeira natureza e do seu verdadeiro destino. Impossível reduzi-la a uma
conquista particular e eventual de algumas criaturas que hoje se entregam a
praticas de meditação.
Claro que com isso não pretendo negar nem diminuir o valor
da meditação como disciplina mental e como recurso de elevação espiritual.
Sustento apenas que a meditação é o produto e não a produtora da experiência de
Deus, pois essa experiência já marcava o homem muito antes que ele houvesse
adquirido o poder do pensamento abstrato e pudesse meditar. A vivência
religiosa, pelo simples fato de ser vivência e não reflexão, é inerente ao
homem desde o seu aparecimento no planeta. Essa é uma questão que hoje se
coloca de maneira evidente.
A concepção espírita vai mais longe e mais fundo, negando
ao homem atual o direito de isolar-se do mundo para buscar a Deus, e portanto
de buscar a Deus ou aos poderes espirituais através de processos artificiais. O
meio natural de evolução, para o homem e para todas as coisas e todos os seres,
é a relação. Se nos afastamos do relacionamento social e cultural para nos
elevarmos, estamos nos colocando em posição errada e tomando um caminho
ilusório. A busca solitária de Deus é um ato egocêntrico e preferencial. O
místico vulgar não mergulha em si mesmo para encontrar em Deus a relação com o
mundo, como o fez Descartes, mas, pelo contrário, para desligar-se do mundo e
ligar-se isoladamente a Deus. Não é guiado pelo amor à Humanidade, mas pelo
amor a si mesmo. Prefere elevar-se acima dos outros para encontrar em Deus o
refúgio e a fortaleza em que poderá construir e usufruir sozinho a sua
felicidade particular. Prefere a fuga ao mundo, em termos de superioridade
pessoal e portanto egoísta, anti-religiosa, à ligação com o mundo e com Deus
para a realização da unidade global que é o objetivo da religião.
A diferença absoluta entre a posição do Cristo e a posição
do Buda e das chamadas religiões orientais é precisamente essa. Enquanto o Buda
abandona o mundo para buscar a Deus na solidão, o Cristo mergulha no mundo para
religar os homens a Deus. A ação do Buda é subjetiva e contrária à experiência
do mundo, enquanto a ação do Cristo é objetiva, considerando a experiência do
mundo como necessária ao desenvolvimento da experiência de Deus no homem. Meio
milhão de pessoas entregues à meditação para tentar a ligação pessoal de cada
uma delas com Deus não representa um esforço coletivo de unidade - uma ação
religiosa mas a simples coincidência de esforços particulares e isoladas, como
vemos na busca do ouro nas regiões auríferas. Não se trata, pois, de uma ação
coletiva e sim de milhares de ações individuais e egoístas.
Não quero de maneira alguma negar o valor espiritual do
Buda, cuja posição correspondia á necessidade de orientação de uma comunidade
de almas estranhas à Terra, exiladas em nosso planeta, que tinham por objetivo
a volta aos seus mundos de origem. Nesse caso, a negação individual do mundo
(do nosso mundo) tornava-se coletiva em virtude do objetivo comum do retorno ao
paraíso perdido. A teoria espírita da migração entre os mundos - apoiada na
teoria cristã das muitas moradas da Casa do Pai - é a chave indispensável à
compreensão desse problema.
A evolução de cada mundo atinge o momento em que a sua
população se divide em dois campos bem diferenciados, como vemos hoje na Terra.
Um deles evoluiu o suficiente para integrar urna humanidade planetária
superior, o outro continua em estado inferior. A população desse campo inferior
precisa ser transferida para outro mundo que esteja no seu nível evolutivo, a
fim de que as criaturas refaçam ali o tempo perdido. Quando essa população
atingir ali, no outro planeta o nível de evolução necessário, voltará ao seu
mundo de origem. Nessa situação, a vivência isolada nas práticas solitárias da
meditação constitui uma recapitulação de aprendizado. Era a essas almas
emigradas que o Buda dirigia a sua mensagem superior, como outros haviam feito
antes dele.
Ao contrário disso, a revelação espírita considera a graça
simplesmente como a força que Deus concede ao homem de boa-vontade para vencer
as suas imperfeições, seja ele desta ou daquela religião ou de nenhuma delas. O
batismo exclusivista e sectário é substituído pelo antigo batismo do espírito,
acessível a todos, não segundo o critério eclesiástico, mas segundo o critério
de Deus. Nada exemplifica melhor essa questão do que o episódio de Atos em que
o Apóstolo Pedro, em Jope, se
recusa a atender o centurião Cornélius, mas advertido pelo mundo espiritual o
atende e descobre o sentido universal do batismo do espírito. Pedro, ainda imbuído dos
princípios isolacionistas do Judaísmo, não podia entender que lhe fosse
permitido socorrer uma família de romanos impuros em que a mediunidade eclodia. Foi necessário
que o Espírito advertisse - a ele que seguira e ouvira o Cristo até o momento
da prisão - de que Deus nada fizera de impuro, para que a sua consciência se
abrisse à verdadeira compreensão da mensagem cristã.
O egocentrismo humano, essa centralização do homem em si
mesmo, que gera e alimenta o orgulho, é uma decorrência natural das fases de
formação da consciência, de formação do indivíduo como uma unidade espiritual
específica, aposta à pluralidade e confusão do mundo. Mas esse egocentrismo,
que deve. abrir-se em altruísmo na proporção em que o homem amadurece, é
alimentado pelo anseio de privilégios que as igrejas satisfazem com as suas
concessões ilusórias aos fiéis. Tudo tem a sua utilidade em seu tempo, mas
depois se torna inútil e até mesmo prejudicial. No próprio meio espírita essa
tendência a conservar posições do passado ainda subsiste, particularmente no
plano institucional, onde os postos de comando reacendem no espírito a chama de
velhas e desvairadas ambições. O homem, espírito encarnado - envolto na neblina
da carne, como ensina Emmanuel - está sempre e inevitavelmente propenso a reincidir em seus
erros do passado. A volta às condições da vida material o coloca de novo ante a
possibilidade de desfrutar as oportunidades que lhe foram úteis ou agradáveis
no passado. As ilusões renascem no seu coração humano. As perspectivas
espirituais se perdem no nevoeiro. Nas religiões formalistas esse apelo do
passado adquire muito mais força.
A luta contra os resíduos do passado exige oração e
vigilância, como Jesus ensinou. Não obstante a idealização do Diabo, como
personificação mitológica do Mal, todas as grandes religiões reconhecem que a
tentação está dentro de nós mesmos. Muito mais que a influência dos espíritos
inferiores, o que nos arrasta de volta aos velhos caminhos do erro são as próprias
tendências que trazemos em nosso íntimo. A oração consciente, feita com
sinceridade e fé, areja o nosso íntimo, lança a sua luz sobre as escuras
paisagens interiores da alma, fazendo-nos discernir o contorno real das coisas.
Nada se modifica em nós, mas iluminamo-nos por dentro. E se mantivermos a nossa
vigilância na intenção verdadeira de acertar, facilmente veremos o que nos
convém e o que não nos convém. Poderemos então repetir com Paulo: Tudo me é
lícito, mas nem tudo me convém. E, seguindo assim o caminho que a prudência
esclarecida nos indica, tudo modificaremos para melhor em nós mesmos,
tornando-nos aptos a auxiliar os outros a se melhorarem.
Temos a cada instante, a cada minuto, diariamente em nossa
vida a experiência de Deus. Porque a própria vida é, em si mesma, essa
experiência. Desde o momento
em que nascemos até o instante final da nossa existência estamos em relação
permanente com Deus, não o Deus particular desta ou daquela igreja, mas o Deus
em espírito e matéria que se manifesta numa haste de relva, na beleza gratuita
de uma flor, no brilho de uma estrela, num perfume, numa voz, numa nota musical
isolada, num aperto de mão e principalmente numa idéia, num sentimento, numa
aspiração que brota do anseio de transcendência da nossa alma. O que nos falta
é estar mais atentos, mais despertos para a percepção consciente desses
múltiplos e infindáveis milagres da vida cotidiana. O homem sem Deus é somente
aquele que se nega a aceitar a presença de Deus em si e em seu redor. Para esse
homem, a meditação é um ensaio no campo da frustração, um mergulho no mundo
opaco do sem-sentido.
CAPITULO V - DEUS,
ESPIRITO E MATÉRIA
Para melhor entender-se a expressão Deus, em espírito e
matéria, que usei no capitulo anterior, - e melhor entender-se também o problema
da experiência de Deus no tempo - julgo necessário tratar dos princípios da
cosmogonia espírita, na qual se integra a teoria da gênese e formação do
espírito. O contra-senso da afirmação bíblica de que Deus criou o mundo do
nada, que tanto trabalho deu aos teólogos, é explicado na revelação espírita
pela teoria da Trindade Universal Deus, o Ser Absoluto, é a fonte de toda a
Criação. Existindo essa fonte solitária, é logicamente necessário admitir-se um
meio em que ela existia. Esse meio, que seria o espaço vazio, foi considerado o
nada. Para tratar do Absoluto num plano relativo, como o nosso, é preciso usar
expressões relativas.
A concepção espírita do mundo não admite a existência do
nada. O Universo é pleno - é uma plenitude - não havendo nele nenhuma
possibilidade de vácuo. Essa teoria espírita da plenitude está hoje sendo
confirmada pela pesquisa científica do Cosmos. As regiões siderais que
poderíamos julgar vazias mostram-se como campos de forças, carregadas de
energias que escapam aos nossos sentidos. Esse pré-universo energético seria o
que Buda definiu como o mundo sempre existente, que nunca foi criado.
Pitágoras, em sua filosofia matemática, considerou Deus como o número 1 que
desencadeou a década. O UM, número primeiro, existia imóvel e solitário no
Inefável (naquilo que para nós seria o nada) e nesse caso o nada seria a
imobilidade absoluta. Houve em certo momento cósmico, não se pode saber como
nem por que, um estremecimento do número 1, que assim produziu o 2 e a seguir
os demais números até o 10. Completando-se a década, tivemos o Todo, a Criação
se fizera por si mesma, o Universo surgira e com ele o tempo. E claro que não dispomos
de recursos para investigar as origens primeiras, e essas teorias não passam de
tentativas de explicações lógicas, destinadas a nos proporcionar uma base
alegórica ou hipotética para uma possível concepção do mistério da Criação.
O Espiritismo sustenta a possibilidade de conhecermos a
verdade a respeito, quando houvermos desenvolvido as potencialidades espirituais
que nos elevarão acima da condição humana. Enquanto não chegarmos lá, essas
hipóteses devem servir para mostrar-nos que dispomos de capacidade para ir além
dos limites do pensamento dialético, além do conhecimento indutivo baseado no
jogo dos contrastes.
Assim sendo, não podemos aceitar a alegoria bíblica da
Criação ao pé da letra, como verdade revelada, nem contestá-la orgulhosamente com a arrogância do materialismo. Na
posição do crente temos a ingenuidade e na posição do materialista temos a
arrogância do homem, esse pedacinho de fermento pensante, como dizia o Lobo do
Mar de Jack London. O espiritualismo simplório e o materialismo atrevido são os
dois pólos da estupidez humana. O bom-senso, que é a regra de ouro do
Espiritismo, nos livra da estupidez e nos oferece a possibilidade de chegarmos
à sabedoria sem muito barulho e disputas inúteis.
Partindo do pressuposto de que o mundo deve ter uma origem
e aceitando a idéia de que foi criado por Deus - pois assim o afirmam todos os
Espíritos Superiores que se referem ao assunto e que revelam uma sabedoria
superior à nossa - o Espiritismo admite que a fonte inicial é uma inteligência
cósmica. Mas porque uma inteligência e não apenas um centro de forças
casualmente aglutinadas no caos primitivo? Porque o Universo se mostra
organizado inteligentemente em todas as suas dimensões, até onde podemos
observá-lo? Seria ilógico, absurdo, supormos que essa inteligência da estrutura
universal, que se manifesta em minúcias ainda inacessíveis à pesquisa
científica, desde as partículas atômicas até aos genes biológicos e seus
códigos admiráveis, seja o resultado de um simples acaso. Nenhuma cabeça
bem-pensante poderia admitir isso. A teoria espírita - teoria e não hipótese,
pois esta já provou a sua validade através de todas as pesquisas possíveis -
pode ser resumida neste axioma doutrinário: Não há efeito inteligente sem causa
inteligente, e a grandeza do efeito corresponde à grandeza da causa.
Colocando assim o problema, sua equação se torna clara. O
Espiritismo a elabora em termos dialéticos: a fonte inicial, Deus, existindo
num meio ao inefável, constituído de matéria dispersa no espaço, emite o seu
pensamento criador que aglutina e estrutura a matéria. Temos assim a Trindade
Universal que as religiões apresentam de maneira antropomórfica. Essa trindade
não é formada de pessoas, mas de substâncias regidas por uma possível
Inteligência, constituindo-se assim: Deus, Espírito e Matéria.
O espírito que a constitui não é uma entidade definida,
mas o pensamento de Deus que se expande no Cosmos em forma de substância. Essa
substância espiritual penetra o oceano de matéria rarefeita, dispersa, e
aglutina suas partículas, estruturando-as para a formação das coisas e dos
seres. Da tese espiritual e da antítese material resulta a síntese do real, do
mundo criado por um poder inteligente.
Qual a razão de ser, o objetivo, a finalidade e o sentido
dessa Criação? O Espiritismo admite que não podemos conhecer tudo isso em nosso
estágio de desenvolvimento, mas podemos, através da nossa inteligência humana,
indagar, perquirir, pesquisar e chegar a resultados logicamente possíveis. Os
dados científicos da Geologia, par exemplo, nos mostram a Terra como o
resultado de um longo processo de formação, no qual é evidente a intenção de
atingir um tipo de perfeição em todas as coisas e todos os seres. As formas
imprecisas e grotescas das primeiras idades do planeta vão se aprimorando ao
longo do tempo, numa sucessão nítida de fases de elaboração caprichosa. Os
dados da Antropologia nos revelam o aprimoramento do homem nas civilizações
sucessivas, a partir das selvas. Os dados da Psicologia nos desvendam os
anseios da alma humana, na busca incessante de transcendência, de superação do
seu condicionamento orgânico-material. Os dados da Estética revelam-nos o
anseio de beleza, perfeição e equilíbrio que rege o desenvolvimento individual
e coletivo, o indivíduo e a espécie.
Gustave Geley, em seu livro Do
Inconsciente ao Consciente,
propõe-nos uma visão dialética do mundo em que as coisas se transformam em
seres e estes avançam em direção à consciência. É a mesma visão da teoria
dialética de Hegel. Oliver Lodge considera o homem atual como um processo em
desenvolvimento. O Existencialismo, em suas várias escolas, encara o homem como
um projeto, um vetor que se lança na existência em busca da
transcendência. Para Sartre, o homem se frustra nessa busca e se nadifica na
morte, se reduz a nada. Para Heidegger, o homem se realiza no trajeto
existencial e se completa na morte. Para Jaspers, o homem consegue transcender-se
em dois sentidos: o horizontal, na relação social, e o vertical, na busca de
Deus. Para Léon Denis, todo o processo de transformação se explica por esta
frase genial: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e
acorda no homem. Para Kardec, a transcendência humana nos leva ao plano da
angelitude, pois os anjos nada mais são do que espíritos que superaram as
condições inferiores da humanidade.
Temos assim o Universo, com a multiplicidade de seus
mundos rolantes no espaço sideral, de seus sóis e suas galáxias, como um fluxo
permanente de forças em transformação incessante, objetivando a formação dos
seres e a elevação destes a condições divinas. Só a hipótese de Sartre admite a
inutilidade como finalidade universal.
Os Espíritos Superiores, em suas comunicações, desmentem e
rejeitam essa hipótese negativa, sustentando a natureza teleológica do
Universo. Consideram a Criação como um gigantesco processo que só pode ser
definido como o fiat em sua fase inicial, quando a Mente Suprema emite o seu
pensamento para unir essa emanação do seu espírito à matéria dispersa. Depois
desse instante criador desencadeia-se o tempo e é nele que o processo criador
vai desenvolver-se lentamente através dos milênios. E a superioridade desses
Espíritos não é avaliada por medidas ou métodos místicos, mas por verificações
racionais. Os Espíritos Superiores não ensinam apenas através de idéias, mas
também de fatos. Provam através da produção de fenômenos paranormais, que
possuem uma ciência muito superior à nossa, um conhecimento do espírito e da
matéria que estamos longe de atingir e uma compreensão de Deus que supera de
muita as nossas interpretações antropomórficas da Inteligência Criadora. Além
disso, as suas previsões se confirmam de maneira rigorosa, demonstrando que
possuem recursos de futurologia muito mais avançados e seguros que as nossos.
Suas proposições são ainda relacionadas com os nossos conhecimentos,
completando-se na medida em que o nosso adiantamento permite que nos falem a
respeito sem provocar dúvidas ou confusões em nossa mente.
A relação de Deus com o Universo não é apresentada em
termos de mistério, mas de realidade verificável. Na Terra, o homem representa
o ponto culminante do processo evolutivo. A criação do homem à imagem e semelhança
de Deus explica-se em termos espirituais. Porque o homem é o único ser terreno
que possui mente criadora, pensamento produtivo e continuo psiquismo refinado e
complexo, capacidade de percepção e de intuição que lhe permitem penetrar na
essência das coisas, ultrapassando a aparência ilusória. Feito assim, como um
reflexo da divindade, o homem se liga a Deus não apenas pelos laços do ato
criador, mas também por afinidade psíquica e espiritual. É um herdeiro de Deus
e co-herdeiro de Cristo, como escreveu Paulo, que se prepara para entrar na
herança do futuro.
A relação de Deus com o homem começa, portanto, muito
antes que ele se defina como criatura humana. Desde o momento em que o
pensamento de Deus se une à matéria para modelá-la, e nas fases subseqüentes,
em que espírito e matéria se fundem nas formas substanciais de
que tratou Aristóteles, a relação de Deus com o homem se desenvolve em
progressão constante. Quando se estrutura a consciência humana no ser em
evolução, a marca de Deus ali está presente, na lei de adoração que é o sentimento inato de sua filiação divina e se
manifestará no sentimento religioso, base de todas as experiências religiosas
da Humanidade. Temos de dividir o conceito da experiência de Deus, em que tanto
se apóiam as religiões formalistas, em dois tipos bem definidos de experiência:
a de Deus, que começa no fiat, como elemento ontogenético (elemento constitutivo da
própria gênese do homem) e a religiosa, que corresponde às tentativas de uma
tomada de consciência de Deus através de formulações religiosas por meio de
rituais, instituição de igrejas, sistemática liturgia e sacramental,
organização clerical, ordenações e elaboração dogmática. Confundir a
experiência genética de Deus com a experiência formal da vivência religiosa é
característica do pensamento superficial, que facilmente se acomoda no jogo
aparencial das instituições humanas. Deus, espírito e matéria formam o
triângulo fundamental de toda a realidade. A onipresença de Deus não implica o
mistério de uma pessoa sobrenatural que se dispersa nas coisas, mas a
participação do pensamento criador de Deus em tudo, desde a formação do átomo
até a formação da consciência. Compreendendo que espírito e matéria são os dois
elementos estruturais da realidade, compreendemos que Deus esteja presente em
todas as partículas do Universo, como o poder criador, onisciente, controlador
e mantenedor de todo o equilíbrio universal. Deus penetra o mundo e está nele,
como a seiva no vegetal, mas não se reduz a ele, pois permanece inalterável
como a fonte de que tudo emanou.
A Ciência atual está chegando rapidamente a essa
constatação. Dizia o físico nuclear Arthur Compton, em seu ensaio sobre o lugar
do homem no Universo, que descobrimos a energia por trás da matéria, mas já
começamos a perceber que por trás da energia existe algo mais, que parece ser
pensamento. A unidade, a coerência, a perfeição dessa concepção espírita do
mundo e do homem passam despercebidos no tumultuar das teorias absurdas que,
como escreveu Charles Richet, atravancam o caminho da nossa Ciência. Mas parece
já próximo o momento em que o caminho se tornará livre.
Não há lugar, nessa concepção admirável, para o equívoco
da contradição Espiritualismo-Materialismo em que até agora nos debatemos.
Espírito e matéria aparecem sempre unidos, interligados e interatuantes, na
dialética da Criação. E a negação de Deus, como observou Descartes, é tão
absurda como pretendermos tirar o Sol do Sistema Solar.
CAPITULO VI - A CRIAÇÃO DO HOMEM
Concedo-me o direito de abstrair-me do problema de Deus
para examinar a questão da criação do homem. Os cientistas se colocaram
precisamente nessa posição e admitiram a existência de um processo evolutivo no
qual o homem aparece como o resultado de uma filogênese fantástica. Dos animais
inferiores até os superiores, num desenvolvimento progressivo e complexo, as
forças naturais modelaram formas sucessivas de vida que deram como resultado o
aparecimento da espécie humana na Terra. A superioridade do homem ante as
espécies animais de que ele procederia suscitou dúvidas e debates que
permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discípula e companheira de Sartre no
campo da concepção existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie não pode ser aplicada à humanidade, que não é uma espécie
animal, mas um devir, algo em auto-evolução constante e irrefreável. Alfred
Russell Wallace, êmulo de Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao
materialismo biológico daquele, sustentando uma posição espiritualista. De
Spencer a Bergson a concepção evolucionista conseguiu firmar-se como a mais
elevada interpretação da realidade, apesar da insistência das correntes
dogmático-religiosas e das correntes irracionalistas em combatê-la,
considerando-a simples teoria metafísica sem bases científicas.
Após a segunda guerra mundial e em conseqüência das
atrocidades a que grandes nações civilizadas foram conduzidas, o pessimismo
levou o homem a novas formas de dúvida. Passou-se a falar em mudanças não em
progresso ou evolução. Produto do susto e da decepção, esse recuo está sendo superado
pelo próprio avanço científico, em que os processos da evolução se confirmam
continuamente. Kardec já advertia, no século passado, que o mal das
interpretações humanas está na falta de uma visão mais ampla e profunda da
realidade. Os homens vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza e se
apegam a essa percepção restrita para a elaboração de seus pensamentos. Exemplo
típico dessa restrição mental é a tentativa, hoje renovada, de separar a
evolução biológica, considerada inegável, dos demais aspectos do processo
evolutivo universal. Uma restrição arbitrária, característica da orientação
analítica da pesquisa científica e oposta à visão de conjunto dos métodos
conclusivos da reflexão filosófica.
Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a oposição
dos contrários. O método analítico é uma faca de dois gumes. Por um lado nos
faculta a precisão objetiva no conhecimento de uma realidade específica, por
outro lado nos impede a visão de conjunto. Foi exatamente por isso que se
tornou necessário, após o aparente desprestígio da Filosofia, ante as
conquistas inegáveis da pesquisa científica, recorrer-se à Filosofia das
Ciências para evitar-se a fragmentação total do Conhecimento. Sá no plano
filosófico se tornou possível reajustar as conquistas científicas num quadro
geral de interpretação da realidade. Mas existe outro fator determinante da
desconfiança científica em relação aos princípios espíritas, que é o instinto
de conservação, agente preservador da integridade do homem e das suas
realizações. Esse instinto, bem manifesto no sócio-centrismo das instituições
científicas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo o que possa
modificar o saber já considerado como adquirido. Recentemente, o Prof. Remy
Chauvin, do instituto de Altos Estudos de Paris, denunciou a existência no
campo científico de uma alergia ao futuro, responsável pela rejeição liminar,
sem exame, de toda novidade, mesmo que sustentada por cientistas categorizados.
Essa neofobia tem produzido muitos mártires no campo científico e cultural em
geral.
Pouco a pouco, porém, e
hoje mais rapidamente do que no
passado, essa posição acomodatícia vai sendo vencida pelas próprias exigências
do progresso, da evolução científica. Em nossos dias, a descoberta da
anti-matéria, as pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenômenos paranormais
através da Parapsicologia, a recente descoberta do corpo-bioplásmico do homem e
de todos os seres, o êxito, ainda incipiente, mas já significativo das
pesquisas sobre a reencarnação, a constatação da existência de outras dimensões
da realidade, a evolução do conceito de universos-paralelos para o de
universos-interpenetrados, a aceitação da pluralidade dos mundos habitados e da
escala evolutiva dos mundos - proposta há mais de um século pelo Espiritismo -
estão arrancando as corporações científicas de suas cômodas poltronas
acadêmicas e lançando-as decisivamente em órbita, nas rotas giratórias do
progresso.
Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que ele se
compara a um falcão que gira em circulo crescentes em torno a uma torre
secular, símbolo de Deus. E uma imagem feliz da evolução, que se processa em espiral.
O retorno à barbárie na segunda guerra mundial não representa retrocesso da
evolução humana, mas apenas uma curva decrescente da espiral que tocou os
resíduos bárbaros do homem - a região subterrânea dos instintos animais - para
uma espécie de catarse coletiva. Mas tudo serve para a exploração dos que se
entregam ao comodismo e dos que ainda não conseguiram desprender o seu
pensamento dos objetos materiais. A História da Matemática nos mostra que o
pensamento dos primitivos era de tal maneira apegado ao concreto que, nas
tribos selvagens, a contagem das coisas não excedia ao número de dedos das
mãos, indo quando muito até à soma dos dedos dos pés. A posição dos
anti-evolucionistas atuais assemelha-se, guardadas as distâncias culturais, à
dos selvagens presos aos seus próprios dedos. Temos a prova da evolução em nós
mesmos e em tudo o que nos rodeia, mas os espíritos sistemáticos e opiniáticos
querem as favas contadas onde não há favas.
O Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Universo,
numa seqüência constante de relações. No item 540
de "O Livro dos Espíritos”, obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposição:
Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o Arcanjo, pois ele
mesmo começou pelo átomo. Assim, do átomo nasce o minério, deste o vegetal,
deste o animal, deste o homem e deste o Anjo, o Arcanjo e quantas criaturas
espirituais quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural desaparece quando
admitimos o processo continuo da evolução. A Natureza nos mostra as duas faces
da concepção de Espinosa, com
sua teoria da Natureza Naturata e da
Natureza Naturans, equivalente ao
conceito de mundo sensível e mundo inteligível, do pensamento de Platão,
interligados e interatuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas
já vimos que a fonte originária, pelo fato mesmo de ser a origem de tudo está
ligada ao Todo e nele se insere. Podemos como os druidas (os sacerdotes celtas
das Gálias) imaginar o Universo formado por três círculos: o de Gwinfid, em que Deus permanece; o de Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais; o de Anunf, correspondente às regiões
inferiores do plano evolutivo. Mas na concepção materialista o círculo de
Gwinfid não pode existir, uma vez que Deus foi excluído. Como podemos considerar a criação do
homem sem a ação de Deus? E o que tentaremos expor agora.
A união de dois princípios fundamentais, força e matéria,
existentes no caos primitivo, determina o aparecimento das estruturas atômicas.
Os átomos se aglutinam em formações diversas e produzem os elementos minerais.
Mas estes elementos não estão mortos, não são estáticos. No seio da sua
aparente placidez os átomos continuam em permanente agitação e produzem, quando
as condições se tornam favoráveis, as primeiras formas vegetais. Nestas formas
temos o nascimento da sensibilidade rudimentar, que vai desenvolver-se até a
produção das primeiras formas animais. A atividade atômica transmite-se a essas
formas produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação própria, que
arranca os animais do solo e os submete às experiências vitais. A sensibilidade
se aguça e se aprimora através de milênios. Os cérebros rudimentares se
desenvolvem e se enriquecem, o sistema nervoso (desenvolvimento do sistema
fibroso vegetal) estrutura-se
numa rede sensível, permitindo a organização de um aparelho cerebral que capta
e reelabora os estímulos exteriores. Os animais evoluem até o aparecimento dos
primatas, que assinalam o salto qualitativo do cérebro animal para o cérebro
humano.
Eis, em linhas gerais, nesse esquema superficial, o
processo de criação do homem. Quanto mais simples esse esquema, mais fácil para
compreendermos a lenta elaboração da criatura humana a partir da noite dos
primórdios. E de supor-se que essa criatura grosseira, elaborada a partir do
mineral, não tenha qualquer outra experiência além das que enfrentou no
processo de sua formação. Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma
inteligência criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginação e
- o que mais assombra - dotada de um anseio crescente de elevar-se além da sua
condição humana e atingir uma posição superior de que ele jamais podia ter tido
algum vislumbre. Quanto mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste
entre a sua condição primitiva - de bicho da Terra tão pequeno, como escreveu
Camões - e os seus anseios insopitáveis de elevação e comunicação com planos e
seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso? Supõem os materialistas que se trata de produtos da imaginação
excitada pelo medo, num desejo natural de alcançar a segurança através de
criações imaginárias. Mas como explicar a coerência dessas criações arbitrárias
com os fenômenos paranormais, cuja existência está hoje cientificamente
provada? Que dizer de uma idéia primitiva, como a de uma duplicata do corpo
material que pode projetar-se à distância, que Spencer atribuiu simplesmente ao
sonho, quando esse corpo hoje se confirma através da pesquisa cientifica no
campo da Física e da Biologia, par pesquisadores materialistas?
Esse é o momento em que temos de voltar à idéia de Deus
inata na criatura humana - o Ser perfeito de Descartes encontrado no fundo da
sua própria imperfeição - à lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu
papel decisivo na orientação do homem para a sua humanização. O acaso da
concepção materialista transforma-se necessariamente numa inteligência cósmica
a desafiar, por sua grandeza e sua inegável sabedoria na construção universal,
a miserável inteligência humana, capaz de tudo atribuir a um jogo de forças
cegas no seio de uma nebulosa. Não precisamos nem mesmo pensar nas formações
complexas do homem ou do anjo. Podemos ficar nos primórdios, examinando apenas
a estrutura do átomo, a construção infinitesimal desse universo microscópico,
ou melhor, infra-microscópico. Mas se olharmos para cima e pensarmos nos
sistemas solares, na galáxia e nas super-galáxias, o absurdo da concepção
materialista se tornará simplesmente monstruoso. Sentiremos as orelhas de Midas
substituírem, peludas e agudas, as nossas delicadas orelhas humanas.
E o que dizer da experiência de Deus procurada
através de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão percorrida pela
humanidade através dos milênios, numa experiência natural e vital em que as
forças da vida vão brotando do chão do planeta e projetando-se às profundidades
cósmicas? E como
se milionários ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas
e janelas fechadas, para contar os níqueis do bolso do colete a fim de avaliar
quanto possuem, para terem a experiência do dinheiro. Basta isso para
mostrar-nos a razão da crise religiosa do presente. Os homens começaram a
descobrir que possuem muito mais do que as igrejas lhes podem dar.
Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica,
arrancado das entranhas do reino mineral, segundo a teoria evolucionista
espírita, o homem está ainda em formação, em desenvolvimento, amadurecendo nas
experiências que enfrenta na existência corporal. O corpo é o seu instrumento
de evolução. Um instrumento vivo e ativo que ele precisa controlar pela força
do espírito. Na proporção em que avança, o espírito se impõe ao corpo e o
domina. A dialética da evolução torna-se nele um
processo consciente. E o responsável
único pelo sucesso ou fracasso do seu destino. Deus está nele como um poder mantenedor e orientador, mas
não punitivo. Ele mesmo se castiga ante o tribunal
da sua consciência. Quando se dispõe
a progredir, o prêmio que recebe é a graça que o fortalece para que possa
vencer o mal. Ninguém pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe
da jurisdição de si mesmo e supera o seu condicionamento determinista pelas
decisões do seu livre-arbítrio. Juiz e réu ou mesmo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento de causa.
CAPÍTULO VII - DO PRINCÍPIO INTELIGENTE
Tratei até agora da relação direta do pensamento de Deus
com a matéria. Essa relação é necessária, da mesma
maneira que é necessária a relação direta do pintor com o quadro que ele executa, e portanto
do trabalho que ele realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na
verdade, o seu pensamento se projeta no quadro e ali se materializa, passa do
plano do inteligível para o plano do sensível. Ao completar sua obra, cessa a
relação direta ou ativa, mas permanece a relação passiva ou indireta. Assim, a
relação direta caracteriza o ato de pintar, ou de criar. Pode-se alegar a
existência de intermediários: as mãos, a palheta e o pincel, a tinta. Mas
convêm lembrar que todos esses instrumentos fazem parte da obra em execução,
sobre a qual o pensamento do pintor atua diretamente.
Na ação de Deus sobre a matéria o processo é o mesmo. O
pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual
temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do
sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto
divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa
maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do
campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou
ato inicial da criação temos a ação direta e ativa do pensamento divino
estruturando a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo
que é designado pela
expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia,
sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta. Transforma-se na mônada,
elemento básico e estrutural da matéria, de que são compostas as próprias
partículas atômicas. A palavra mônada procede de Pitágoras, foi empregada por
Platão como idéia e desenvolvida modernamente por Leibniz e Renouvier como uma
substância inteiramente simples (pura indivisível e refratária a qualquer
influência exterior]. A mônada é dotada de uma força interior que a transforma,
de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de
percepção e vontade. As mônadas são diferentes entre si no tocante a essas
potências internas.
Estas correlações filosóficas são necessárias para
entender-se o que é o principio
inteligente da concepção espírita. Trata-se, como
se vê, do princípio básico de toda a realidade, responsável pela formação dos
reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as faculdades
vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de intuição dos gregos captou
não só a existência dos átomos, como também a das mônadas, que a Ciência atual
já está conseguindo atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria,
na pesquisa sobre as partículas atômicas. A teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no “O Livro dos Espíritos”. No item 23 dessa obra lemos o seguinte: Que é o espírito? E o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras
explicações nas quais a inteligência se define como um atributo essencial do
espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a inteligência,
que é seu atributo.
Colocado assim o problema, parecem-me explicada as razões
pela quais os Espíritos Superiores não esmiuçaram essa questão fundamental. Na
própria tradição filosófica, desde bem antes da era cristã, já dispunhamos dos
elementos necessários de intuições capazes de nos fornecerem os dados para uma
equação futura. Faltava-nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde
poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Atualmente já
podemos compreender com mais clareza a dinâmica do processo criador. A teoria
filosófica da mônada, que antes poderia ser considerada como simples hipótese
inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria cientifica ao alcance da
comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Dirac, par exemplo,
segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de elétrons livres, ou a
dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violácea
proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades novas que
as pesquisas espaciais estão abrindo nesse campo. O mesmo se pode dizer da
teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.
É evidente que, diante dessas novas posições conceptuais,
toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o advento de um novo mundo. A
inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e profundas da realidade
universal, exigindo a reformulação de conceitos e estruturas culturais
envelhecidas. Não podemos mais pensar em Deus como uma figura humana, nem do
ponto de vista formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser
Absoluto, como a Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma
das limitações humanas. Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical
da Morte de Deus, sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para
uma equação mais positiva do problema. Divagam através de suposições
ameaçadoras e caem irremediavelmente num torvelinho de contradições. Se
tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da
parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do novo edifício a
construir.
O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos tópicos e
que nos Evangelhos torna o nome de Espírito Santo é o Espírito de Deus em sua
manifestação universal. A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual.
O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão terreno,
o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus
nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da vida e da
inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da mônada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente
desde o princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o
modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projetar-se no
Infinito. Por isso, as mônadas diferenciadas, com características específicas,
seriam semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos
conteúdos essenciais de cada uma delas. A mônada é a semente do ser, da
criatura humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.
Não se pode conceber, em nossa relatividade humana, mais
grandiosa e perfeita concepção do ato criador. Podemos perguntar por que Deus,
que é o supremo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas
o Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de necessidades nossas e
não de Deus. O que para nós são séculos e milênios, para Deus pode ser apenas
aquele instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo com a
eternidade. Um instante de profundidade e extensão imensas, que resume para o
homem todas as suas existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são
acessíveis: a espiritual e a material.
E, sem dúvida, espantoso pensar, como Gustave Geley, que
tudo quanto consideramos inconscientes, desde o grão de areia aos mundos que
giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da consciência em
desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a mônada, síntese
de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apóia toda
a realidade - o que corresponde à concepção atômica da Ciência em nossos dias -
nossa mente começa a abrir-se para um entendimento superior. Se o poder do
átomo nos espanta, a potencialidade da mônada nos aturdiria. E ambos esses
poderes nada mais são do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos
nisso, a teoria do princípio inteligente começa a revelar-nos a grandeza da
doutrina espírita.
E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios
evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos, filósofos, místicos e
pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa de páginas e
palavrórios ao longo de dois mil anos. Essa opacidade da inteligência humana,
esse embotamento da capacidade de compreensão poderia fazer-nos descrer das
potencialidades do principio inteligente se não soubéssemos que o instinto
gregário do homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios. Quando Kardec
se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de sensatez e equilíbrio,
apoiando-se na cultura do Século XIX - para não provocar reações precipitadas
que lhe prejudicariam a obra - a publicar "O Livro dos Espíritos",
todos os anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como
as bombas norte-americanas sobre o Vietnã. Somente agora se abre uma
perspectiva favorável, em todos aqueles campos reacionários, para uma possível
compreensão do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas em seus lugares.
Mas então aparecem os que pretendem reformar, atualizar e tecnilizar as suas
obras ao invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto
necessitamos do tempo para que a mônada oculta se abra e se atualize em nós.
Todas as coisas têm sua origem no mundo das idéias, como
Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu claramente. Nos planos
superiores do Universo não se usa a linguagem articulada das hipóstases
inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates
descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra.
Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente
divina a idéia do Universo delineia-se perfeita, mas a projeção dessa idéia no
plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da
materialidade. Foi o que Hegel viu
e descreveu com precisão em sua teoria estética, mostrando a luta do belo para
se sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.
O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para
vencer a opacidade da matéria, para inteligenciá-la, segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas,
podemos perguntar, porque Deus não fez em condições transparentes a matéria, ao
invés de opaca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na
proporção em que visualizamos os planos superiores, de tal maneira que a
confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes
desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada
inteligência considerou como o Nada. Kant teve razão ao localizar os limites da
razão humana no momento em que cessam as contradições dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha
divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os
homens transformados em anjos - não com asas nem com estrelas na fronte, mas
com a mente e o coração purificados, passam a ver e a compreender a realidade
pela intuição direta e global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo,
aquela perfeição que, desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas
que nas hipóstases materiais tornava-se irreconhecível como a Vênus de Milo
coberta de terra e lama quando á arrancaram do subsolo.
O próprio tempo desaparece nesse momento. Não há mais
necessidade do véu de Ísis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas
e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e inerte como o supomos,
mas tem a dinâmica e a lucidez
de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, em suas
pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório humano, com a divisão das
faculdades sensoriais em órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo,
não existe para os espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritas
percebem, vêem e sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com
toda a realidade. As deslocalizações e transferências das sensações nas
práticas hipnóticas comprovam, em nosso plano, a veracidade dessa descoberta
efetuada nas suas pesquisas mediúnicas. Seu ensaio sobre a sensação nos
espíritos, que se encontra no livro básico da doutrina, ê uma peça de esclarecimento lúcido e
didático desse problema.
As pesquisas atuais da Parapsicologia, que até agora só
puderam refazer o caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmação da
validade das suas afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no interesse
inferior da defesa de posições sectárias, toda uma multidão de falsos
cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de
capciosos argumentos temperados na panela da mentira ou nos caldeirões da
trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que a verdade triunfe, pois a
verdade é, existe par si mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou
ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos
dela.
CAPÍTULO VIII - O CORPO - BIOPLÁSMICO
Quando falei pela primeira vez do corpo-bioplásmico na
televisão, uma senhora estrangeira telefonou ao estúdio do Canal 13 (São Paulo)
para me fazer uma advertência. Achava que a descoberta desse corpo do homem,
dos animais e das plantas, feita por físicos e biólogos soviéticos, não passava
de uma nova armadilha dos materialistas russos na luta contra a religião, com objetivos
certamente políticos. Dizia que conhecera de perto a manha dos soviéticos,
sofrera na pele a sua crueldade e não queria me ver enganado por eles, servindo
como inocente útil para propagar as suas mentiras no Brasil. Respondi-lhe
tentando explicar que se tratava de um problema científico e não político, que
por sinal nos chegava através de informações universitárias procedentes dos
Estados Unidos. Procurei mostrar-lhe que uma manobra dessa espécie seria hoje
impossível, diante da dinâmica atual da comunicação e da possibilidade de
comprovações ou desmentidos de meios universitários de todo o mundo. Nada disso
convenceu a senhora, que insistiu de
maneira angustiosa na sua
advertência. Depois dela, vários outros telespectadores, na maioria estrangeiros,
telefonaram-me e procuraram-me pessoalmente para fazer advertências
semelhantes. Isso equivale a uma demonstração da falência cultural do nosso
tempo. Não obstante todo o nosso avanço científico e tecnológico, a praga da
mentira na religião, na política, na administração e em todos os setores de
atividades públicas leva as pessoas a duvidarem de tudo, a verem por toda parte
o perigo de manobras com intenções ocultas.
No programa de televisão que deu origem a este livro, no
mesmo Canal 13, a apresentadora Xênia insistiu na necessidade de sermos francos
ao tratar dos assuntos em pauta. Chegou mesmo a declarar que alguém ali devia
ter a coragem de dizer a verdade sabre o motivo da crise religiosa dos nossos
dias. Segundo pensava, essa crise decorria simplesmente da mentira, como
explicou num programa posterior. Na verdade, a mentira é um dos motivos da
crise, mas não o motivo básico. Se eu pensasse assim, não teria nenhuma razão
para contornar a situação. E que as mentiras pregadas pelas religiões nem
sempre são mentiras, mas enganos decorrentes de falta de compreensão dos
problemas essenciais do homem. Seria levar muito longe a desconfiança na
natureza humana, acreditar que pessoas crentes em Deus organizassem as
religiões com a finalidade de embair o povo. Mas essa é também uma prova do
clima de desconfiança da nossa época. Encontramos nas religiões muitas pessoas
cultas, inteligentes, honestas, que acreditam piamente nas coisas mais absurdas
par aceitarem a infalibilidade dos dogmas e das interpretações escriturísticas.
O problema da descoberta do corpo bioplásmico situa-se de
tal maneira no quadro dos avanços atuais da Ciência, representando mesmo uma
conseqüência lógica desses progressos, que não poderia suscitar dúvidas em
ninguém medianamente informado. A descoberta da antimatéria, as pesquisas
parapsicológicas, o desenvolvimento da medicina psicossomática, as sondagens
cósmicas da astronáutica e outras prodigiosas conquistas do nosso tempo
conduziam naturalmente o homem à descoberta da sua própria natureza. Imagine-se
um mundo em que
a Ciência houvesse provado a indestrutibilidade de todas as coisas, mas
continuasse aceitando o dogma materialista da destruição total e absoluta do
homem pela morte, imagine-se a cultura aberta desse mundo endossando o pessimismo
doentio de Sartre que prega a nadificação do homem, a sua frustração total na
morte e considera a doutrina da evolução, do pensamento de Heidegger, coma uma
queda no misticismo vulgar. O espetáculo do pensamento sartreano, tão rico em
intuições filosóficas e tão decepcionante na sua conclusão ontológica, esse
espetáculo desnorteante da cultura contemporânea seria um pingo dágua ante esse
possível absurdo de âmbito universal.
O equívoco marxista do materialismo já foi ultrapassado
pelo desenvolvimento científico e filosófico de nosso tempo. Não há mais lugar,
na cultura atual, para os dogmas religiosos e os dogmas materialistas. Entre os
cientistas soviéticos é evidente a existência de muitos dissidentes do
oficialismo tipo século XIX. O interesse atual da URSS pelas pesquisas
parapsicológicas é um indício claro, indício que a China Vermelha se incumbe de
confirmar ao reagir violentamente contra ele. Todos sabemos que o Prof. Raikov
e outros pesquisadores soviéticos, na Universidade de Moscou e em muitas outras
da URSS, entregam-se à pesquisa científica da reencarnação, embora
disfarçando-a em anomalia mental que tem de ser esclarecida no campo
psiquiátrico. A verdade se revela em toda parte e, mais hoje, mais amanhã,
tornar-se-á evidente.
As câmaras kirlian, de fotografias sabre campos imantados
de alta freqüência elétrica, foram descobertas por acaso pelo casal Kirlian, e
os cientistas soviéticos mais atilados logo perceberam o seu alcance.
Adaptando-a a poderosos microscópios eletrônicos conseguiram descobrir, no
interior dos corpos vivos de vegetais, animais, e homens, uma estrutura de
plasma físico, constituída de partículas atômicas, que se apresentava coma um
corpo básico e sustentador da vida e das atividades vitais e psíquicas do corpo
material. A importância dessa descoberta é de tal alcance que não poderia ser
negligenciada, pois representa uma verdadeira revolução copérnica na Física, na
Biologia e na Antropologia, para só ficarmos nesses três campos fundamentais.
Mas é bom lembrarmos de passagem o que ela representará para a Psicologia, a
Medicina, a Psiquiatria e a Psicoterapêutica em geral. Basta dizer que os
soviéticos já chegaram a descobrir que o corpo bioplásmico fornece elementos
para a verificação do estado geral de saúde do corpo físico, permitindo também
a prevenção de doenças e distúrbios nos seres vivos de qualquer natureza. Por
outro lado, as pesquisas realizadas nos Estados Unidos confirmam a descoberta
soviética.
Desde o século passado, vários cientistas se empenharam na
descoberta de meios para provar a existência no homem do chamado corpo
espiritual ou duplo-etéreo. Em 1943 Raoul Montandon publicou na Suíça um
curioso livro intitulado De la Bête a
l´Homme (Do Animal ao Homem) relatando pesquisas psicológicas que mostram
semelhanças significativas entre o reino animal e o hominal e pesquisas
científicas que provavam a existência nos animais de um carpo energético. Essas
pesquisas são relatadas no capítulo intitulado Sobrevivência animal. Várias
fotografias batidas com filmes sensíveis à luz infravermelha, de grupos de
gafanhotos e insetos mortos com éter, revelavam ao lado dos animais mortos uma
sombra semelhante ao corpo morto, enquanto ao lado dos que não haviam morrido,
mas estavam em estado letárgico, não aparecia a mesma sombra. No capitulo das
fotografias psíquicas, batidas ocasionalmente ou em sessões mediúnicas
experimentais, os anais espíritas apresentam impressionante volume de casos
significativos, cercados de todos os recursos de garantia da autenticidade do
fenômeno.
No caso atual das pesquisas soviéticas, com aparelhagem
técnica de precisão, a demonstração da existência desse corpo extrafísico (para
usarmos a expressão parapsicológica atual) foi decisiva. Os soviéticos,
operando em comissão científica oficial, na Universidade de Alma-Ata, no Cazaquistão,
fizeram experiências com moribundos e conseguiram verificar a retirada total do
corpo - bioplásmico dos mortos, cujos corpos materiais só então se
cadaverizavam. Não tendo sido possível fotografar esse corpo depois do seu
desprendimento do cadáver, empregaram a técnica de pesquisa por meio de
detectores de pulsações biológicas e verificaram, surpreendidos, que as pulsações
captadas indicavam a presença do corpo - bioplásmico no ambiente.
Bastam esses dados sumários ao objetivo deste livro. Dados
mais completos e minuciosos já foram divulgados entre nós com a edição da
tradução do livro de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, pesquisadoras
norte-americanas que entrevistaram os cientistas soviéticos na URSS, e cujo
trabalho foi editado pela imprensa da Universidade de Prentice Hall (USA) e
posteriormente pela editora Bantam Books, de Nova IIorque. A descoberta do corpo-bioplásmico constitui uma
confirmação científica, proveniente do campo materialista, da teoria do
perispírito. Segundo o Espiritismo, o perispírito é o corpo espiritual de que
tratou o Apóstolo Paulo na I Epistola aos Corintos. Sua função é servir ao espírito como instrumento para a sua
manifestação nos planos materiais. E através
dele que o espírito se liga à matéria no processo da encarnação. Durante a Vida
terrena ele é o agente das atividades orgânicas. Mantém a vida do corpo e serve
de campo padronizador durante o desenvolvimento deste, a partir da fecundação,
regendo a formação do embrião. Na morte, o perispírito se desliga
progressivamente do corpo material, que só se cadaveriza com o seu desligamento
total. Na maioria das pessoas o perispírito, após a morte, permanece nas
proximidades do cadáver por tempo mais ou menos longo, em virtude da atração
que os despojos exercem ainda sobre o espírito. Esse corpo é considerado na
doutrina espirita como semimaterial, constituído de energias materiais e
espirituais em integração. É o corpo da ressurreição, conforme já afirmava o
Apóstolo Paulo.
Todas essas características do perispírito são confirmadas
pelas observações dos cientistas soviéticos, que consideraram esse corpo como
material, constituído por um plasma físico formado de partículas atômicas. Mas
um fato intrigante aparece nas pesquisas soviéticas: esse corpo só pode ser
visto e fotografado enquanto está ligado ao corpo material. Uma vez
desprendido, não está mais ao alcance das câmaras kirlian. Somente os
detectores de pulsações biológicas podem constatar a sua presença no ambiente.
As câmaras kirlian, coma já vimos, só podem agir sobre campos materiais
imantados por correntes elétricas de alta freqüência. Desligado do corpo
material, o corpo-bioplásmico
ou perispírito não oferece condições para isso. Parece-me evidente o motivo por
que ele, então se torna inacessível. Não está mais revestido de um campo
material, embora contenha em sua própria estrutura energias materiais. O
próprio nome cientifico dado a esse corpo - bioplásmico, mostra a sua função
vital e a sua natureza plásmica. Esse problema, entretanto, não é somente
físico. Na proporção em que o espírito, liberto da matéria, vai se integrando
no mundo espiritual, seu perispírito vai se libertando dos elementos materiais.
A descoberta desse corpo pelos materialistas representa a
maior vitória do Espiritismo e ao mesmo tempo a conquista mais importante da
nossa era cientifica, pois com ela a Ciência terrena dá o primeiro passo para a
sua futura fusão com a Ciência espiritual. Este é o mais significativo sinal de
que estamos entrando na Era do Espírito. Oliver
Lodge referiu-se ao túnel mediúnico, uma
via de ligação do mundo material com
o mundo espiritual, acentuando que esse túnel vem sendo cavado dos dois lados
pelos homens e pelos espíritos. Quando os trabalhadores daqui e do além se
encontrarem, o túnel estará aberto e
a comunicação entre os dois planos se
tornará tão fácil como as comunicações entre as várias regiões da Terra. Até
agora somente os espíritas trabalhavam do lado de cá. De agora por diante, os
cientistas também darão a sua cota de serviço.
A descoberta do corpo-bioplásmico e os estudos sobre as
suas funções e a sua estrutura vêm também contribuir para que os enganos das
religiões cristãs sejam corrigidos. Pouco a pouco a verdade se impõe e a
mentira vai sendo afastada. A Religião, que constitui, como a Filosofia e a
Ciência, uma das grandes províncias do Conhecimento, está prestes a retomar o
seu lugar no plano cultural. Mas para isso as religiões sectárias deverão
seguir aquela advertência de Jesus: perder a sua vida individual para fundir-se
na vida coletiva, num processo livre de religiosidade universal que nos dará a
Religião em Espírito e Verdade. Foi essa a profecia de Jesus à mulher
samaritana.
Não há nenhuma outra saída para a crise religiosa do nosso
tempo. As teologias artificiais, como a da Morte de Deus, são ensaios de vôo
cego num céu vazio, nublado pela dúvida. A realidade é uma só. A confirmação
positiva da existência do espírito, através da Ciência em desenvolvimento
acelerado, porá um ponto final nas especulações religiosas. E não há nenhuma
outra plataforma, na Terra, para a execução dessa reintegração da Religião no
campo cultural, além da obra de Kardec. Os homens do futuro ficarão
estarrecidos ao verem que tivemos todos os dados nas mãos para fazer essa
integração em nosso tempo e não conseguimos fazê-la. Perguntarão a si mesmo o
que nos faltou e talvez alguém lhes diga: humildade.
CAPITULO IX - DÚVIDA E CERTEZA
A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão. Quando
o pensamento se lança na busca de um objeto e depara com dois caminhos
divergentes, pode ficar indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto
Empírico a dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale dizer entre
aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a condição primeira da busca da
verdade, considerando-a como uma suspensão do juízo para verificar-se se ele está certo ou errado. Para John Dewey
a dúvida nasce de uma situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa
maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que iniciou a filosofia moderna
com a prática da dúvida metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades
ao pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram por condená-la como
de origem diabólica. A frase de Tertuliano: credo quia absurdum (creio
mesmo que seja absurdo) teve longo curso no combate às heresias. Como os dogmas
eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelação feita por
Deus aos homens, estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas
fossem aparentemente absurdos.
Ainda hoje essa posição é comum em numerosas seitas e
religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a sabedoria humana é
loucura para Deus, como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina
pode parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é considerada como
condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha coma método de
controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários.
Tendo mostrado que os espíritos são criaturas humanas desencarnadas, libertas
do corpo material pela morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar
ainda as opiniões erradas que esposaram na Terra, aconselha a análise constante
e o exame atencioso das manifestações, que devem ser rejeitadas quando
revelarem conceituações absurdas.
A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e
da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que
tenham condições de cultura e bom-senso para criticar. Descartes afirmou que o
bom-senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do
bom-senso depende de boa orientação do entendimento. Kardec oferece, em toda a
sua obra, instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e aconselha a
consulta, em casos de dificuldade, a pessoas reconhecidamente capazes de
resolver problemas com lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo pode ser apreciado e discutido em termos de bom-senso
ou boa razão. Descartes aconselhava a evitar-se dois elementos perigosos ao
raciocínio, que são o preconceito e a precipitação. Kardec acrescenta a
necessidade de vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas cultas
ou incultas a considerar-se capazes de reformulações doutrinárias com base
apenas em suas opiniões pessoais.
Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles, como
regra para aceitação de revelações espirituais, não o fez no sentido
aristotélico do termo, mas em sentido espiritual, com o nome de consenso
universal. A aplicação desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou
da opinião das gentes como verdade, mas apenas a coincidência de manifestações
mediúnicas sobre o mesmo tema, por médiuns diversos, desconhecidos entre si, em
locais diversos e no mesmo tempo. É esse um meio de controle a ser usado sob as
condições de verificação racional do tema e de confronto do mesmo com os
conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura geral. Levantou assim
uma barreira à autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso
e seguro que tenha sido em suas atividades, nem por isso está livre de se
deixar empolgar por idéias errôneas. De um critério de verdade que era
evidentemente de natureza opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente
válida para facilitar o uso do bom-senso pelos espíritas.
A necessidade de certeza na orientação do conhecimento,
num mundo em que tudo se passa no plano das relações, exige um critério
cientifico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não
aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao
controle da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores,
que desejavam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o
estimularam nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena atingira a
maturidade suficiente para libertar-se do ciclo de revelações pessoais e
locais, dadas sempre de maneira mística, através de um mestre, profeta ou
Messias, numa determinada região e a um determinado povo. A última dessas
revelações havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local já se abria
ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um
sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova da sua evolução, as
civilizações isoladas deviam fundir-se através de processos mais amplos e
eficientes de comunicação, o mundo greco-romano chegava ao fim objetivado pelo
seu desenvolvimento, um longo e doloroso processo de fusão de suas conquistas
no campo do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade deveria
iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade Média, segundo a concepção
de Dilthey. Essa fusão resultaria na Idade da Razão com o Renascimento,
preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da Tecnologia, que levaria o
mundo a um progresso cada vez mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria
todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvânica as grandes
civilizações orientais e obrigando-as a seguir os padrões ocidentais. Era
necessário que a passividade mística fosse substituída pela atividade racional,
na luta dos homens em busca da compreensão de suas próprias responsabilidades
na direção da vida humana.
Cumprida essa programação, a Terra já estava, em pleno
século XIX, em condições de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de
unificação espiritual, capaz de guiá-la aos objetivos mais elevados de sua
integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo, com
as crises ameaçadoras de uma fase de transição acelerada, e portanto violenta,
perguntam se não estamos errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo
aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo. Realmente, a Terra não
parece ainda preparada para o salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos
notar, ao longo da História, que a
técnica divina parece apoiar-se num
principio de tensão-máxima para fazer-nos avançar. A preguiça humana, a
tendência à acomodação, o apego à vida coma ela é, só podem ser removidos por
meios compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os vendilhões
que o transformam em mercado, que não pensam em Deus, mas apenas no dinheiro.
Só pelo impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para encontrar a
vida em abundância de que Jesus falou. Os anos, os séculos, os milênios passam
rápidos na direção da eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra
indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não nos forçassem a buscar
com maior rapidez os objetivos reais de nossa existência.
Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos
constatar na leitura das suas obras. Por isso não converteu o Espiritismo numa
nova religião estática, segundo o conceito de Bergson,
mas ligou-o a todos os campos da
cultura para que possa agir como uma religião dinâmica, aquela religião em
espírito e verdade de que Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão alguma
para que a religião continue como um departamento estanque e privado,
condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de
interesses sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e deve
integrar-se nesta em plenitude. Seus princípios não podem manter-se alheios ao
progresso geral. Por isso, o Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que
agora está sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciências da
matéria. Chegamos tarde à complementação do fiat da criação, mas estamos agora
no momento em que o espírito se liga à matéria no campo das concepções humanas.
A certeza, em nosso mundo, nunca pode
ser absoluta. E também relativa, mas corresponde ao máximo possível de
exatidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo do conhecimento. Não
poderíamos ficar no terreno das hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos
tão graves como a origem do homem, sua natureza intima e seu destino no sistema
cósmico. Kardec, à maneira de Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento
religioso. Os fenômenos espíritas, como ele mesmo observou, estavam na moda.
Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade científica, relutou a
princípio - pois duvidara da veracidade desses fenômenos - mas acabou aceitando
o convite para comparecer a uma reunião. Ali constatou a realidade, mas não
aceitou a sua interpretação espiritual. Procurou explicar a chamada dança das
mesas como possível efeito de forças conhecidas: a eletricidade, a gravidade, o
magnetismo, um suposto
poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas não
ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. Seu encontro com as meninas da família
Boudin, uma de 14 e outra de 16 anos, médiuns excelentes permitiu-lhe uma série
de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de "O
Livro dos Espíritos". Pelas mãos dessas duas mocinhas nasceu o Espiritismo. E renasceu Allan Kardec, o druida das Gálias antigas,
para substituir o Prof. Denizard Rivail (seu nome verdadeiro) o discípulo
emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no desenvolvimento de sua Pedagogia
Filantrópica. Dali por diante, numa seqüência de 15 anos, as pesquisas
prosseguiram, dos quais 12 na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por
ele fundada e dirigida. Nesse período de 15 anos Kardec elaborou os cinco
volumes da Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à doutrina,
um manual de introdução à prática mediúnica, numerosos artigos para a imprensa
e os doze volumes da Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada
volume.
Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos
Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações de Obras Póstumas. E
sua conduta de pesquisador foi louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do
século, que discordava das conclusões de Kardec, mas reconhecia, em seu Tratado
de Metapsíquica, o valor do homem que iniciara as Ciências Psíquicas na França
e no Mundo. Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica da sobrevivência
do homem à morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua
especialidade científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenômenos
espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos comprovariam a sua
descoberta, mas não ficariam em meio do caminho. Avançariam como Crookes,
Notzing, Zollner, Ochorowicz, Geley, Osty, Aksakov até a certeza final de
Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da imortalidade. Dali por
diante, os que pretendem reduzir o homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar -
até mesmo nas religiões - contra a maior e mais fecunda certeza científica da
cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciências do paranormal, até a
Parapsicologia contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda continuam, em nossos
dias, diante da evidência fulminante das últimas descobertas científicas
físicas, biológicas, psicológicas e astronáuticas - a insuflar com suas
bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida antimetódica. Fingem não
perceber que esse fantasma é um balão furado e de mecha queimada.
A superação da dúvida no Espiritismo não se fez através
dos métodos subjetivos da meditação religiosa e do êxtase místico, mas do
método científico de pesquisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kardec,
como se vê logo no início do Tratado de
Metapsíquica. Integrado
na tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI, com a revolução
cientifica de Bacon e Descartes, Allan Kardec encarou o problema espiritual de
maneira objetiva e, numa posição tipicamente existencial, criou o método
apropriado à pesquisa dos fenômenos espíritas. Ao contrario do que alegam até
hoje os seus contraditores, demonstrou de maneira exaustiva que os fenômenos
espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário para a confrontação
dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam
comprovar logo em seguida e como as pesquisas parapsicológicas atuais novamente
comprovaram e demonstraram.
Essa subversão metodológica no campo do conhecimento
espiritual, até então submetido aos princípios da fé, despertou violenta reação
que ainda hoje não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no
mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a Deus através da indução
lógica, desprezando os processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar
o espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade, sustentando que a
alma nada mais era do que o espírito que anima um corpo. E ousava dar uma nova
explicação da Gênese que incluía a criação do homem por Deus como um fato
natural, dialeticamente explicável. A morte perdia o aspecto misterioso
alimentado pelas religiões e os videntes e profetas eram considerados como
criaturas em que uma faculdade humana natural, a mediunidade, havia se
desenvolvido de maneira mais intensa.
Pacientes e incessantes pesquisas - e não revelações
místicas - levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do
homem. E a prova de que realmente o levaram foi dada posteriormente pelas
pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até
mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que
alargam as dimensões das Ciências. E assim que a dúvida sobre a continuidade da
vida após a morte foi vencida pela certeza no
campo das investigações espíritas. As religiões que ignorarem esse fato
culminante da evolução humana na Terra acabarão asfixiadas, por falta do
oxigênio da verdade, em seus círculos estreitos de fanatismo e exclusivismo.
Não há somente crise nas religiões, há sinais evidentes de agonia.
CAPITULO X - MAGIA E MISTICISMO
O homem primitivo não via o mundo, mas a magia da
Natureza. Não tendo ainda o pensamento desenvolvido, o raciocínio metodizado,
não podia sequer conceber o mundo. Tinha mais sensações do que emoções e mais
emoções do que idéias. Seus sentimentos germinavam no plano larvar dos
instintos. E os instintos animais o dominavam, sem dar lugar aos instintos
espirituais. Era mais corpo que alma. Kardec assinala dois seres na estrutura
humana: o ser do corpo e o ser espiritual. No homem atual esses dois seres se
equilibram e a sua psicologia pode ser medida pela predominância de um ou de
outro ou pela sua equivalência. As pessoas em que predomina o ser do corpo
estão mais próximas do primitivismo. Aqueles em que os dois seres se equivalem
apegam-se mais ás coisas materiais e têm dificuldade em conceber a realidade do
espírito. As pessoas em que predomina o ser espiritual dão mais importância ás
questões espirituais. As primeiras estão apegadas ao passado humano, as segundas
à pragmática do presente e as terceiras tendem para o futuro. Mas entre uma e
outra dessas posições evolutivas existem numerosas variações que podem ser
classificadas em fases intermediárias de múltiplas nuanças. A escala espírita
de "O Livro dos Espíritos" oferece-nos um quadro psicológico geral
dessas talvez inumeráveis variações tipológicas.
A percepção mágica do mundo (restrita ao ambiente tribal
ou do clã) levou o homem primitivo às práticas mágicas. Seu pensamento se
desenvolvia na experiência, revelando-lhe progressivamente as relações
existentes entre as coisas e os seres. Podemos supô-las assim, como simples
dados exemplificativos: vida-alimento, bicho-mato, peixe-água, ave-céu,
fruta-árvore, flecha-caça-inimigo, homem-mulher-criança, dia-sol, noite-escuro-lua.
Essas relações primárias lhe davam a possibilidade de agir com eficiência no
meio físico. Através delas ele começou a agir instintivamente no plano
espiritual e nasceu a magia simpática ou simpatética, a arte incipiente de
atingir o inimigo através de reproduções de sua figura em barro ou madeira e de
evocar as forças benéficas através de símbolos correspondentes a elas. Nascia o
feitiço e conseqüentemente o feiticeiro. E de ambos nasceriam mais tarde os
ídolos, os sacramentos, os sacerdotes e as religiões com seus rituais. Esses
processos rudimentares arrancavam o homem da selva e do gelo e o lançavam na
direção da civilização. Um longo caminho a percorrer no aprimoramento dessas
técnicas primitivas através dos milênios.
Mas os homens não estavam sós nem abandonados a si mesmos
em nenhuma dessas fases. A idéia de Deus pairava obscura sobre o fundo nebuloso
de suas experiências filogenéticas e a lei de adoração os levava a reverenciar
o mistério da terra, das águas, do céu estrelado, das montanhas coroadas de
nuvens. Do fundo escuro das matas surgiam o bem e o mal, as forças e os seres
benéficos e maléficos. Muitos desses seres não tinham a consistência das
criaturas de carne e osso. Apareciam e desapareciam como as chamas noturnas dos
fogos-fátuos, Uns os auxiliavam e eram considerados deuses benfazejos. Outros
os ameaçavam e eram os deuses malfazejos. Espíritos bons velavam pelas tribos e
orientavam os seus chefes. Pajés e xamãs tinham o dom de evocá-los e
consultá-los. Como nas cidades cósmicas da Grécia arcaica, de que tratou
Durkheim, homens e deuses conviviam numa espécie de intermúndio. Essa situação
perdurou nas civilizações agrárias, no ciclo das grandes civilizações
orientais, no mundo clássico, gerando as religiões mitológicas com seus
oráculos e suas pitonisas. No Judaísmo e no Cristianismo temos a sua
continuidade, o que se pode verificar pelos textos bíblicos e evangélicos.
Já no Paganismo encontramos as práticas místicas dos
chamados Mistérios, com rituais específicos para levar os iniciados à relação
direta com o mundo espiritual e especialmente com Deus. No Egito antigo e nas
religiões dos impérios americanos dos aztecas, maias e incas havia o emprego de
sumos vegetais que originariam as drogas atuais como a mescalina e o ácido-lisérgico,
para a produção do estado de êxtase, que é o fenômeno central dessas práticas.
Pelo êxtase, provocado ou espontâneo, o místico se desliga de toda a realidade
sensível, do mundo material, e mergulha no inteligível, no mundo espiritual.
O Misticismo tem suas origens remotas no êxtase dos pajés,
que em meio às selvas procuravam o contato direto com os espíritos protetores
das tribos. O pressuposto do misticismo nas eras civilizadas é a possibilidade
humana de superação dos sentidos e da razão para obter-se o conhecimento
superior nas fontes divinas. Esse pressuposto conduz os homens a uma fuga da
realidade. No Espiritismo as práticas místicas são condenadas por dois motivos
fundamentais: 1.) porque o homem
está no mundo para viver o mundo com o fim de desenvolver na experiência da
vida de relação, as suas potencialidades internas; 2.) porque a ligação do homem com Deus se faz através do amor ao
próximo, na prática da caridade (que é o amor em ação) e de maneira natural,
sem a necessidade de práticas rituais ou do emprego de excitantes de qualquer
espécie. As pessoas que consideram o Espiritismo como doutrina mística,
confundem a fenomenologia mediúnica com as práticas do misticismo. Não sabem
que a mediunidade como hoje está confirmado pelas pesquisas parapsicológicas -
é simplesmente uma faculdade humana natural que permite a todos o exercício da
percepção extra-sensorial. O misticismo nasceu das manifestações naturais dessa
faculdade e da falta de condições culturais para o seu estudo racional. A mística
experiência de Deus das religiões dogmáticas depende das práticas místicas e de
uma concepção anti-racional do mundo e da vida. Por isso Ranzolli propõe a
limitação do termo misticismo às filosofias religiosas, substituindo-o no campo
filosófico geral por expressões como irracionalismo e intuicionismo ou
sentimentalismo.
O Cristianismo - que os árabes chamaram religião do livro
- utilizou-se em sua origem da mediunidade, mas sua posição em face das
religiões anteriores foi nitidamente racionalista. Todos os ensinos de Jesus,
mesmo quando ele se referia a Deus, chamando-o de Pai, são racionais. Sua
condenação constante do irracionalismo judeu foi sempre seguida de explicações
racionais, através de exemplos em forma de parábolas tiradas da própria vida diária
do povo. Ao tratar do dogma judaico da ressurreição ele se referia claramente
ao nascer de novo, usando exemplos históricos como a volta de Elias
reencarnado em João Batista. Suas referências às potencialidades divinas do
homem eram exemplificadas pelos fenômenos produzidos por ele mesmo e pelos seus
seguidores. Nunca falou da sua ressurreição como um privilégio, mas, ligando-a
à ressurreição de todos. O Apóstolo Paulo incumbiu-se de formular a teoria
racional da ressurreição, não da carne, mas do espírito, explicando que o corpo
espiritual do homem, hoje descoberto pelas ciências como corpo-bioplásmico, é o
corpo da ressurreição.
Esse racionalismo foi posteriormente prejudicado pelas
influências pagãs e judaicas do misticismo, que atingiriam nas igrejas cristãs
um refinamento intelectualista paradoxal, opondo o intelecto a si mesmo. Todo o
esforço de Jesus no combate à mitologia foi anulado pelos teólogos, que
transformaram ele mesmo em novo mito, fazendo de sua natureza humana uma
espécie de simples manifestação pragmática da sua divindade. O Espiritismo
retoma a tradição racionalista do Cristianismo primitivo e, da mesma maneira
que os antigos cristãos, prova na prática os ensinos teóricos de Jesus através
das manifestações espíritas, da prova concreta das materializações e das
aparições tangíveis (como a de Jesus para os apóstolos no cenáculo) dos
fenômenos de voz-direta (como o da voz que soou no espaço na hora do batismo) e
dos casos pesquisáveis de reencarnação, hoje em pauta na pesquisa científica
mundial. Nada disso se refere a misticismo, a práticas místicas através de
processos mágicos, de excitantes específicos e de tentativas antinaturais de
transformar o homem vivo em um morto-vivo que nega o mundo para viver como
espírito desencarnado, desligado dos processos necessários da razão. O homem é
deus em potência, não em ato, e não pode querer antecipar a sua atualização
fugindo aos compromissos e experiências da vida terrena. Seus deveres estão
aqui, neste mundo, por enquanto, e suas possibilidades de evolução, de
transcendência, não se encontram na alienação, na fuga, mas na integração
consciente em suas tarefas sociais.
O tempo das igrejas está chegando ao fim, como chegou o
dos Mistérios na Antigüidade. Elas foram necessárias e tanto serviram como
desserviram à Humanidade, revelando sua estrutura imperfeita como a de todas as
obras humanas. Em vão se arrogaram investiduras divinas. A mente humana se abre
hoje para novas dimensões e as igrejas não têm condições para acompanhá-la
nesse avanço. A luta sem tréguas que sustentaram e ainda sustentam contra o
Espiritismo e em especial contra a mediunidade provou a sua incapacidade para
enfrentar os novos tempos. A dinâmica da concepção espírita se opõe à mecânica
ritual das igrejas como a Física moderna se opõe à Física do passado. Na
proporção em que as camadas retrógradas da população terrena vão sendo
afastadas do planeta, na sucessão inevitável das gerações, cresce o
esvaziamento das igrejas e os seminários vão sendo fechados por falta de
alunos. Foi o que aconteceu com as religiões mitológicas do mundo greco-romano.
Para poderem sobreviver, as igrejas têm de desigrejar-se, suprimindo o
profissionalismo sacerdotal, as suas dogmáticas absurdas, as liturgias vazias
de sentido. Antes que possam pagar esse preço demasiado elevado, as forças da
evolução as varrerão da face da Terra. Isto não é uma profecia espírita, é uma
profecia evangélica de Jesus, no episódio com a mulher samaritana. Que ninguém
me acuse de responsável por essa previsão que elas mesmas, as igrejas, por dois
mil anos fizeram ler no Evangelho em seus cultos sem o entenderem. Também não
entenderam a questão das muitas moradas da Casa do Pai, nem a do batismo
espiritual, nem a do nascer de novo, nem a condenação das exigências rituais
dos fariseus. O que podem esperar ou reclamar agora?
Respeitáveis pensadores religiosos, reconhecidamente
cultos, não conseguem ainda libertar-se da magia das selvas, cujos
resíduos impregnam de misticismo as religiões em agonia. Esse apego os
impede de
socorrer as instituições religiosas no momento crucial. Desesperados, acusam o
Espiritismo e os espíritas de incapazes de compreender as sutilezas da fé e exigirem
provas materiais do que não é material. Chegam mesmo a considerar como
profanação a pesquisa espírita dos fenômenos mediúnicos. De outras vezes acusam
o Espiritismo de práticas primitivas e o confundem com as formas do
sincretismo-religioso afro-brasileiro. O materialismo, proclamam, leva os
espíritas a quererem materializar espíritos. Perdem a perspectiva cultural do
nosso tempo e mergulham no passado, acusando-nos de uma posição retrógrada no
campo do Espiritualismo.
Nossas ligações com a selva realmente existem e são as
mesmas que constatamos nas religiões em agonia, mas há uma diferença
fundamental entre a nossa posição e a delas: a reelaboração da experiência.
Essa reelaboração não foi feita pelas religiões, que se limitaram a refinar as
práticas selvagens e cobri-las com o verniz da civilização. Até mesmo a
tentativa de submeter à Divindade ao poder misterioso dos pajés sobrevive em
sacramentos das igrejas, dando aos sacerdotes o poder (que foi negado aos
anjos) de obrigar o próprio Deus a materializar-se em substâncias materiais do
culto, bem como o poder de obrigar o Espírito Santo a manifestar-se nos adeptos
para o batismo do espírito.
No Espiritismo, o que sobrevive das selvas é o fenômeno, o
fato natural da manifestação dos espíritos através da mediunidade, como todos
os fenômenos físicos e químicos, botânicos e biológicos ou psíquicos sobrevivem
obrigatoriamente nas ciências. Mas o Espiritismo não permanece apegado às
superstições da experiência selvagem, reelabora essa experiência à luz da
cultura e descobre as suas leis para poder usá-las em função do progresso. A
capacidade humana de conhecer não tem limites e a divisão absoluta entre
espírito e matéria já foi superada nas pesquisas físicas.
O materialismo morreu por falta de matéria, como afirmou
Einstein, e as religiões agonizam, como podemos ver, por falta de espírito. Há
mais apego à matéria nas práticas e nos conceitos das religiões em agonia do
que nos ritos selvagens, pois nestes a crença ingênua e instintiva
manifestava-se naturalmente, enquanto naquelas é puro artifício, tentativa de
racionalização psicológica de heranças atávicas.
CAPITULO XI - A CURA DIVINA
Para as camadas pobres da população e a gente simples dos
bairros elegantes, onde a ignorância anda sobre tapetes de luxo, o Espiritismo
não é mais do que uma seita de terapeutas obscuros, de curandeiros broncos.
Acredita-se que a única finalidade do Espiritismo é curar por meio de processos
mágicos. Mas a cura divina não é privilégio de ninguém. Encontramo-la em todas
as religiões e seitas religiosas do passado e do presente. E mais ainda a
encontraremos no futuro, mas então já reconhecida coma um processo
cientificamente explicável e não mais sujeito à exploração dos missionários por
conta própria que hoje, nas grandes cidades, enriquecem-se á sombra da
ignorância ilustrada e da miséria analfabeta, tendo por patrono o orgulho
botocudo da alta medicina e o comodismo criminoso da burocracia dos órgãos
oficiais de assistência social.
Ligo o rádio às 4 da manhã e ouço o locutor anunciar o
programa de um missionário da cura divina. O missionário se apresenta
declinando o seu título auto-concedido. Sua voz e suas expressões revelam o
tipo de ignorância radiofonizada. E
um ex-trabalhador braçal que
descobriu em si mesmo o meio de superar sua condição inferior. Fala em nome de
Jesus Cristo e faz desfilar pelo microfone várias criaturas dos bairros
humildes que relatam as curas divinas com que foram agraciadas. A linguagem de
todos é pitoresca e emocionante. Revela ao mesmo tempo a penúria cultural e a
fé ingênua do povo. Algumas pessoas se curaram com o programa de rádio, outras
com o disco de preces do missionário, outras nas reuniões tumultuosas da
igreja, outras, levando peças de roupas de certos doentes ao recinto sagrado,
conseguiram curá-los.
É um desfile impressionante de sofrimento e miséria, de
ignorância e crendice pelos canais de comunicação da tecnologia moderna. Às
vezes, isso acontece também na televisão, embora em programas eventuais, o que
acentua o contraste dos desníveis culturais da nossa época. Não se pode
condenar essa revelação natural da realidade em que vivemos. O mais chocante é
que não se pode nem mesmo condenar a indústria e o comércio dos missionários
espertalhões, que bem ou mal atendem às necessidades de milhares de pessoas
desamparadas.
A cura divina - hoje cura paranormal - é uma realidade
inegável em todo o mundo. Mesmo os cientistas de cabeça-dura reconhecem a sua
existência e procuram explicá-la através dos processos psicossomáticos, da
influência de energias psíquicas sobre o físico. Essa influencia pertence,
segundo o Espiritismo - e agora segundo as pesquisas parapsicológicas e a
descoberta do corpo-bioplásmico pelos físicos e biólogos soviéticos - à própria
estrutura psicofísica do homem. A vida se revela aos nossos olhos, nestes dias,
como o resultado da ação do espírito sobre a matéria, e isso em todas as suas
manifestações, coma já ficou evidente no capítulo sobre o corpo-bioplásmico.
Não se trata de nada excepcional ou sobrenatural, mas, pelo contrário, de um
fato simplesmente natural. E precisamente por isso o problema da aura divina
exige atenção imediata e acurada da Ciência, para que ela seja retirada das
mãos ineptas e em geral gananciosas dos missionários por conta própria. Se isso
não for feito, se os cientistas não levarem o assunto a sério e os médicos e
suas associações profissionais não puserem de lado os seus preconceitos,
enfrentando corajosa e dignamente o problema, serão vãs todas as tentativas
repressoras por meios policiais e ações judiciais. Um fato deve ser encarado
como fato e não como lenda ou superstição. Temos de usar a cabeça e livrar-nos
da estúpida pretensão de superioridade cultural em área que não conhecemos.
A terapêutica espírita existe e vive em luta incessante em
duas frentes. De um lado é atacada por associações médicas e de outro lado
pelas igrejas. A burrice e o interesse profissional estão presentes nessas duas
frentes. Entretanto, a terapêutica espírita não se apóia em pressupostos
ingênuos nem se serve dos processos do curandeirismo. Suas bases teóricas são
científicas e seus métodos psicoterapêuticos, como demonstrou Jean Ehrenwald,
superam os da psicoterapia científica da atualidade. O que a prejudica aos
olhos dos especialistas não está nela, mas neles: é o preconceito, a negação
apriorística e, portanto anti-científica da interferência de influências
estranhas no psiquismo humano. Esse tipo de influências já não pode ser negado
por ninguém, depois dos avanços científicos do nosso tempo. Somente pessoas
desatualizadas cientificamente podem ainda insistir na negação de realidades
cientificamente demonstradas e aceitas nos meios universitários mais
conceituados do mundo.