Tecendo a rede urbana entre
tradição e modernidade: a família-de-santo nas Religiões Afro-Brasileiras
Profª.
Drª. Cristiana TramonteCentro de Educação - Universidade Federal de Santa Catarina
O artigo examina alguns aspectos constitutivos da estrutura em forma de rede do povo-de-santo da Grande Florianópolis, quais sejam: a família-de-santo, a interconexão entre os terreiros, as festas como molas propulsoras da coesão interna e expansão externa, e as estratégias de expansão e consolidação dos terreiros como núcleos individuais principais constitutivos da teia dos religiosos afro-brasileiros.
A
família-de-santo
Um dos nódulos
fundamentais desta rede é formado pelas chamadas “famílias-de-santo” que
começam a multiplicar-se, na Grande Florianópolis, nos anos 70 e que tem sua
base na própria família biológica. Lima (1977) analisou detidamente a
descendência na família-de-santo, isto é, no sistema da família religiosa
baiana. Neste, a mãe-de-santo é a chefe e seus filhos são todos os iniciados
por ela. Assim, no passado, entre os negros africanos em situação de
escravidão, a “linhagem de santo” não coincidia com a linhagem biológica, já
que raramente era possível que esta fosse reconstituída no contexto escravista.
Ele aponta que foram raros os casos em que a linhagem da família se conservou
com alguma coerência estrutural, na organização dos terreiros da Bahia. As
genealogias apresentam maior consistência do lado da linhagem religiosa, mais
facilmente identificável dos que a biológica, fragmentada pelo sistema escravocrata.
A partir destas considerações, pode-se imaginar a importância que assume a
família-de-santo entre os adeptos das religiões afro-brasileiras, penetrando no
vazio emocional e social deixado pela família biológica. Embora Lima tenha estudado especificamente o candomblé baiano, suas reflexões poderiam ser úteis para o entendimento das religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis, guardadas, evidentemente, suas especificidades, já que, em nível local, por exemplo, o seguimento da linhagem de santo não é tão rígido, e, muitas vezes, a transmissão não atinge além do primeiro e segundo graus (mães e avós de santo). As considerações de Lima, entretanto, permanecem adequadas ao contexto local naqueles aspectos que ele possui de nacional, porque, embora o sistema escravocrata esteja extinto há mais de um século no país, acentua-se a situação de fragmentação familiar na sociedade brasileira, especificamente entre a população mais pobre. Esta, geralmente migrante em busca de melhores condições de vida, vê-se muitas vezes na contingência de abandonar seu ambiente familiar em áreas rurais ou semi-rurais para integrar-se às grandes metrópoles, ou mesmo às emergentes, como é o caso da Grande Florianópolis.
Esta região, que teve seu crescimento urbano acentuado a partir da década de 70, receberá, a partir desta época, grande contingente populacional advindo de outras regiões do Estado ou mesmo do país, o que acarretará o afastamento da família biológica. O indivíduo parte para a nova realidade, deixando para trás muitos traços de suas raízes culturais e convívios familiares. Mesmo no caso dos extratos sociais médios, esta fragmentação familiar também ocorre em muitos casos, resultado da urbanização acelerada e do estilo de vida das grandes cidades. A família torna-se nuclear - pai, mãe e filhos, isola-se cada vez mais do restante do grupo de parentesco e, muitas vezes, pressionada pelas condições da vida urbana, vê restringida a convivência até mesmo neste microcosmo familiar.
É neste contexto de desmoronamento das relações biológicas familiares e reconstrução de novas formas de convivência grupal que a família-de-santo adquire significado especial para o grupo dos adeptos, e passa a representar, em muitos casos, a mais importante referência para estes, quando não a única, além de um dos mais importantes nódulos da articulação da rede. Além disso, a hierarquia, as normas, as punições e premiações são mais rígidas e mais definidas na família-de-santo do que na biológica, cuja estrutura vive atualmente um momento de crise, com a dissolução dos antigos valores e indefinição na construção dos novos. Na família-de-santo as regras, as promoções, a hierarquia mantém-se basicamente as mesmas ao longo do tempo. Embora a “velha guarda da religião”, leia-se, os mais antigos “no santo”, queixem-se da ausência de “respeito e consideração” da parte dos mais jovens ao comparar-se com a obediência que devotavam antigamente os filhos-de-santo aos seus pais ou mães-de-santo, muitas das tradições ainda se mantém, apesar de apresentarem-se de forma menos rígida.
O "abandono e esquecimento" dos pais e mães-de-santo por parte de seus filhos-de-santo, tal como na família biológica, também é alvo de duas críticas e ressentimentos por parte daqueles, que apostam num reencontro com estes em outra dimensão, quando então poderão cobrar-lhes os erros e ingratidões cometidas. Afinal, como aponta Lima "os laços familiares criados...através da iniciação no santo não são apenas uma série de compromissos aceitos...como nas ordens monásticas...são laços muito mais amplos no plano das obrigações recíprocas e muito mais densos no âmbito psicológico das emoções e do sentimento. São laços efetivamente familiares" (p.147). Ele aponta que a mãe-de-santo é, para o filho, aquela que o fez nascer de novo para uma nova vida religiosa, através de uma "gestação simbólica nas camarinhas dos terreiros". É este poder simbólico que faz compreender a intensidade desta relação até a atualidade e porque o rompimento e afastamento causem tamanho prejuízo afetivo.
Na relação entre família biológica e família-de-santo os adeptos das religiões afro-brasileiras da Grande Florianópolis apresentam uma peculiaridade: em muitos casos, estes dois grupos coincidem, quer dizer, a família biológica ainda coincide com a de santo configurando elos essenciais de uma mesma rede. Há casos de terreiros conduzidos por famílias biológicas – aí incluídos seus múltiplos desdobramentos de parentesco, em forma de malha urbana – que são também, por sua vez “parentes de santo”, sempre regidos, evidentemente, pelas regras da Lei do Santo, evitando-se as relações incestuosas e outros cruzamentos, cujas especificidades não nos cabe aprofundar aqui.[1] Este fenômeno ocorre na Grande Florianópolis principalmente entre os integrantes “do santo” mais antigos.
O fato da família-de-santo coincidir com a biológica, em alguns casos, aconteceu localmente por diversos fatores: em primeiro lugar, porque sendo a cidade um núcleo urbano pequeno até a década de 70, com restrita influência de pessoas oriundas de outros locais do Estado e até mesmo do país, fez com que se mantivessem os laços familiares e as relações de parentesco de forma mais estreita, o que garantia, inclusive, maior segurança ao grupo diante da repressão e das perseguições das quais os religiosos eram alvos constantes. Como a aceleração da urbanização da Grande Florianópolis é bastante recente, muitos destes grupos permanecem atuando nos terreiros, e por ser Florianópolis a capital do Estado, também o êxodo não fragmentou estas famílias, ao contrário, elas se ampliaram a partir do núcleo básico anteriormente existente, consolidando ainda mais a estrutura em forma de rede. Ou seja, o movimento populacional desta malha urbana na Grande Florianópolis não foi centrípeto e sim centrífugo. Muitos dos antigos núcleos familiares foram simplesmente agregados pelo estabelecimento de novas relações através de casamentos, nascimentos, etc. Grande parte dos entrevistados na atualidade é natural da região e são estes também os mais considerados pelo povo-de-santo, já que tem sua trajetória de “feitura” e suas ações religiosas puderam ser acompanhadas pela rede dos adeptos, podendo ser então comprovada e testada sua “autenticidade” espiritual.
Na verdade, nos anos 70, estava tendo início um processo novo na Grande Florianópolis: os intensos intercâmbios entre o povo-de-santo resultam na criação de famílias-de-santo cuja árvore genealógica ultrapassa os estreitos limites das regiões onde se localizam e do grupo de santo que aí habita. É este o verdadeiro sentido da ancestralidade para o grupo e das múltiplas inter-relações estabelecidas.
Como
vimos, a família-de-santo é a principal célula agregadora do terreiro. Lima
(1977) adota a expressão família-de-santo a partir da referência popular
corrente entre os adeptos das religiões afro-brasileiras que assim definem os
aspectos classificatórios do “parentesco de santo”, os papéis sociais dos pais
e mães-de-santo e o relacionamento com filhos e filhas e destes entre si na
religião. Para o autor, entre os aspectos passíveis de análise da
família-de-santo está a solidariedade grupal, a autoridade dos pais-de-santo, e
todos os aspectos estruturais e funcionais do grupo. Embora Lima tenha estudado
especificamente o candomblé gêge-nagô, suas reflexões podem auxiliar na análise
desta forma particular de organização grupal religiosa.
Estudando
o candomblé baiano, analisou o significado da família-de-santo na segurança dos
indivíduos a ela ligados, segurança esta que decorre de pertencerem a um
sistema familiar socialmente reconhecido, já que grande parte dos adeptos
provém de estratos de classe marcados pela ilegitimidade diante dos valores
hegemônicos da sociedade. Ele enfocou o papel que cumpre a solidariedade
familiar do grupo e a expectativa deste em relação aos papéis preexistentes; a
autoridade e disciplina exercidas por pais e mães-de-santo sobre os filhos, os
tabus, etc. O autor confronta ainda a relação empírica entre a família-de-santo
e a família estruturada em bases “sócio-biológicas” (como define) no contexto
da sociedade global em que os dois sistemas se inserem e descobre um estreito
determinismo entre estas: pertencer a uma família de candomblé, ser criado num
ambiente em que predominam normas de conduta e valores regulados pelos poderes
sobrenaturais dos orixás, tudo isto predispõe o indivíduo à crença e
participação efetiva na religião, reflexões válidas para outras religiões
afro-brasileiras. Interessante destacar, porém que, ao contrário da dimensão
cada vez mais nuclear que adquire a família biológica nas sociedades ditas
modernas, na família-de-santo, permanecem os valores da ancestralidade e das
origens das “feituras” e os fortes laços de parentesco no santo.
Na
Grande Florianópolis, há uma peculiaridade: a família-de-santo muitas vezes
confunde-se com a chamada “família carnal”, ou seja, parentes “de sangue”
passam a ser também “parentes de santo” a partir de relações específicas
estabelecidas quando de sua prática religiosa. Quando se fala em imbricação
entre os dois tipos de família não significa, necessariamente que os papéis
coincidam. Ou seja, não obrigatoriamente a mãe carnal de um filho será também
sua mãe-de-santo. Isto é passível de ocorrer na Umbanda, onde não existe
impedimento dogmático para esta sobreposição, mas não é admitido no candomblé,
segundo o qual é terminantemente proibida a coincidência entre parentesco
carnal e de santo, possuindo toda uma complexidade de relações intra-familiares.
Na
Grande Florianópolis, é relativamente constante o relacionamento entre família
carnal e família-de-santo. É provável que isto se explique pela expansão
relativamente controlada das religiões afro-brasileiras locais se comparadas a
grandes centros urbanos e pela manutenção de um núcleo formador tradicional
ainda ativo que mantém esta característica.
Como
a urbanização da região é um fenômeno recente, significativa parte do
povo-de-santo mantém ainda uma estrutura comunitária, com uma porcentagem relativamente
alta de indivíduos que se relacionam, ou, ao menos, se conhecem e
esporadicamente visitam-se especialmente nas ocasiões festivas. Como também é
recente a história das religiões afro-brasileiras em Santa Catarina , e
especificamente na Grande Florianópolis, (o primeiro terreiro é o de Mãe
Malvina e sua fundação data de 1953) pode-se inferir que muito do caráter
familiar que marcou seus primórdios permaneça até os dias atuais. Entretanto,
este perfil começa a alterar-se com o adensamento urbano oriundo do êxodo rural
e do crescimento da infra-estrutura da região que atrai para cá um grande
número de indivíduos de outros estados do país que aqui se estabelecem
definitivamente.
A
proximidade entre família-de-santo e família carnal é, por vezes, tão profunda
que não é raro o “dono da cabeça” do chefe do terreiro, ou seja, a entidade
espiritual, ajudar na própria criação dos filhos deste.
"Tenho
5 filhos, né? Então prá criar e participar do centro e ser dona de casa, é
muito difícil. Então, no momento que precisava ralhar com eles o Caboclo vinha.
Hoje, todos trabalham aqui no centro". (Mãe Tereza, T.E. Caboclo Cobra
Verde)[2]
O processo de imbricação entre parentesco “de santo” e “de sangue”
em alguns casos ocorre de maneira espontânea, evoluindo naturalmente, resultado
do próprio comprometimento do líder religioso com o terreiro e a
necessidade de conciliar todas as responsabilidades, da familiar à condução
deste. Em alguns casos há, inclusive, a coincidência quase total entre as
famílias de sangue e carnal, ou seja, parte dos centros são conduzidos por
um núcleo familiar, agregado por alguns participantes externos. Este fenômeno
ocorre principalmente quando a chefia do terreiro esta a cargo da mulher,
no caso mãe-de-santo e mãe de família. A contingência do acúmulo das
tarefas e a dupla jornada de trabalho - casa e terreiro - contribui para esta
aproximação. Há situações muito específicas nas quais a mãe carnal tem uma
prole extensa e é também mãe-de-santo de vários membros desta prole. Esta
duplicidade da maternidade é vista pelos envolvidos como uma força positiva na
agregação do grupo familiar carnal e na troca de experiências e conhecimento no
campo da religiosidade, possuindo, portanto, uma finalidade revigoradora para
ambos os aspectos - material e espiritual - da vida dos indivíduos em questão.
"A
minha mãe tem 7 filhos carnais, 5 são filhos-de-santo: 3 da Umbanda e 2 do Candomblé.
Isso em momento nenhum traz desunião, rivalidade entre nós, irmãos. Pelo
contrário. A matriz é a mesma, mas cada um segue seu caminho procurando se
afinar com seu guia, orixá e sua natureza pessoal. Nós irmãos, estamos
unidíssimos. Convivemos e trocamos idéias em matéria de santo. Nossa mãe carnal
é nossa primeira mãe-de-santo de todos nós. Isso faz com que não percamos a
raiz." (Yalorixá Elzeni)
A
entidade mentora do centro é uma referência importante no crescimento familiar,
cumprindo as tarefas de segundo pai ou padrinho, acompanhando o cotidiano da
família, desde o crescimento das crianças até o direcionamento de seu futuro.
"Minha
família, meus filhos, se criaram, nasceram ali. Para eles, a entidade Caboclo é
tudo. Até hoje, ele trabalha comigo e com meu filho. O Caboclo esperou meu
filho crescer e disse: 'agora vou trabalhar com você'". (Mãe Tereza)
A
tarefa de desenvolvimento de um filho-de-santo é comparada pelos
pais-de-santo à criação de um filho carnal. Por isso, é comum o sentimento de
abandono destes por aqueles, tais como ocorre na moderna família ocidental
tradicional, como veremos mais tarde. Os pais religiosos investem esforços,
tempo e energia física e psíquica na formação de novos iniciados “no santo”. O
processo educativo é resultado de atenção, cuidados e eventuais punições,
até a maturidade e a independência.
A
responsabilidade do pai ou mãe-de-santo em relação à família-de-santo é, às
vezes, comparada e considerada superior à família carnal. O papel destes por
vezes extrapola o plano espiritual e estritamente religioso e estende-se à vida
material do “filho”, com o apoio até mesmo em problemas vividos no
cotidiano.
Para
Lima (1977) a família-de-santo é o nódulo central, fundador e mantenedor do
grupo, em torno da qual é estabelecida a rede de relações internas,
materiais e espirituais, entre os participantes. É importante atentar para o
papel que a família-de-santo cumpre na Grande Florianópolis. Para seus
integrantes, a ancestralidade é responsável pela visão de passado e pela
possibilidade de continuidade no futuro. O sentido da ancestralidade se
encontra no plano da descendência religiosa:
"Na
realidade, eu venho a ser bisneto de Engenho Velho pela raiz, né? Porque meu
avô de santo é Pai Bobó, filho da Casa Branca de Engenho Velho, a primeira no
Brasil. isso é importante perguntar: De que casa ele veio? (Pai Edenilson)Além da descendência religiosa, o sentido da ancestralidade “no santo” evoca, para alguns adeptos, o próprio significado da existência da família carnal. As relações encontram-se tão imbricadas que, mesmo inexistindo no candomblé a possibilidade de sobreposição de papéis entre estas duas instâncias, há uma identificação entre pais-de-santo e os pais carnais. A ancestralidade adquire assim, um significado profundo na vida do indivíduo fazendo cruzar os planos materiais e espirituais, mesmo quando este cruzamento ocorre a partir do sofrimento interior e da dor.
A
família-de-santo adquire tal importância para seus integrantes, que sobrepõe-se
a qualquer outra relação social do indivíduo. É uma formação tão determinante
em sua existência, que a força de seus valores supera os valores vigentes na
sociedade em geral. Ou
seja, as inter-relações dentro do grupo de santo são orientadas por suas normas
próprias, muitas delas divergente da sociedade como um todo.
"Você
pergunta se existe racismo dentro do candomblé? Olha, o candomblé está
estruturado nos laços de família e como a matriz é africana, todos fazem parte
desta matriz. Fica claro que a liderança é de matriz africana, então não é
possível explicitar racismo desta forma. Esse racismo vai sendo absorvido pela
relação de família que é muito mais forte.” (Ivan Costa Lima) (grifo meu)
O momento mais
denso em uma família-de-santo é a feitura dos filhos pelos pais-de-santo. A
descendência constitui-se no principal patrimônio espiritual destes. São,
portanto, motivo de grande orgulho, prestígio social e religioso e
reconhecimento público do líder. É o caso de Guilhermina Barcelos, a conceituada
Mãe Ida, que cita orgulho seu “parentesco de santo”. A longa e exaustiva menção
aos seus filhos-de-santo “feitos”, bem como as raízes de sua descendência, é um
signo marcante de sua ancestralidade “no santo” e, portanto, da solidez
de sua formação dentro da tradição religiosa afro-brasileira: "Não tenho idéia de quantos filhos, netos e bisnetos [de santo] eu tenho! Quando a D. Hilca faleceu, tinha umas 400 pessoas no enterro. Todo mundo vinha me tomar a benção. Eu abençoava todo mundo mas não sabia mais quem era. Muita gente! Tantos anos no santo...”
Para alguns adeptos, pertencer a uma família-de-santo é uma estratégia de resistência e de fortalecimento grupal, a partir da recriação dos laços familiares historicamente rompidos.
"A história dos terreiros, feitura de santo é prá recriar uma família, se não sangüínea, mas de parentesco de santo. O sentido de comunidade para o negro é muito importante, e quanto mais ele fica sem esse sentido de base de união dos irmãos, dos pais, vai ficando mais fragilizado". (Yalorixá Elzeni)
Na família-de-santo, geralmente o pai ou a mãe-de-santo ocupam o lugar mais importante na formação do filho, assim como na família carnal. Eles são os responsáveis não só pela “feitura”, ou seja, pela iniciação religiosa, como pelo aconselhamento, orientação e desenvolvimento mediúnico. Principalmente entre os mais antigos, os pais e mães-de-santo permanecem indelevelmente marcados em sua trajetória e em sua memória de vida, como os mais importante guias de sua existência, responsáveis pela superação de inúmeras limitações de caráter físico ou emocional.
Na família-de-santo forja-se o sentido da ancestralidade e a visão de futuro do povo-de-santo, cruzando os planos material e espiritual. Seus valores são próprios e superam os da sociedade em geral cumprindo também um papel de resistência e fortalecimento grupal, recriando laços familiares “carnais” eventualmente rompidos. Na Grande Florianópolis a família-de-santo padece dos impasses das famílias carnais, mas a exemplo destas, oferecem um espaço de referência social e constituem um dos mais importantes “nós” de entrelaçamento da rede do povo-de-santo.
A festa como
elemento agregador
Além da
família-de-santo, entre as formas privilegiadas de articulação interna da rede
do povo-de-santo estão também as ocasiões festivas, que tem ainda a função de
abrir a religião a outros setores sociais, contribuindo para o rompimento dos
estereótipos.
Em
seu estudo sobre o candomblé paulista, Amaral (1992) demonstrou que a festa é o
verdadeiro motor da rede do povo-de-santo. Em torno desta, a rede organiza-se,
revigora-se e cresce. É na festa que todos se encontram, fazem e refazem seus
laços de afinidade, em um verdadeiro “estilo de vida” dos adeptos das religiões
afro-brasileiras. Ora, quem faz festa deseja confraternizar, agregar. É
esperável que, em meio a tanto vaivém, surjam as intrigas, as chamadas
“fofocas”, as comparações, conflitos, jogos de poder, dissidências,
implicâncias, etc. Mas, apesar dos depoimentos por vezes ressentidos, em nenhum
momento reflui a quantidade de festas e de participantes. Ao contrário, é cada
vez maior o número e a dimensão destas. E não são somente as festas por motivos
religiosos com a finalidade de oferendas ou homenagens aos orixás, saídas de
camarinha ou em dias específicos de determinado santo. Qualquer motivo é
pretexto para comemorar, convidar e conviver: aniversário do médium, do
pai-de-santo, bodas de prata de alguém, nascimento dos filhos carnais, etc.
Esta convivência entre a profusão das festas e as “fofocas”, indica que estas
não são necessariamente um sintoma de rupturas definitivas entre o
povo-de-santo, mas uma forma de exercer a crítica e dinamizar o debate, entre
as partes, ainda que indireto. Assim, pode-se resignificar o mecanismo interno
da “fofoca” como uma forma de autoregulação das relações na rede do
povo-de-santo e de acerto das diferenças sem embates diretos e cisões graves.
E
ainda não é apenas nas ocasiões festivas que o povo-de-santo se encontra.
Também nos rituais internos do terreiro, ocorre a participação de
indivíduos de outros centros: nas “feituras de cabeça”, nas “camarinhas”,
por exemplo, geralmente há a inclusão de religiosos de alta hierarquia externos
àquele terreiro. Através do relacionamento com estes, escolhidos entre os que
tem maior afinidade “no santo” com o grupo, criam-se novos laços de compromisso
social e religioso, reforçando os nós da rede do povo-de-santo, através do
estabelecimento de vínculos de “família-de-santo”.
Claro
está, portanto, que em vez de uma rede desintegrada e desarticulada, como
queixam-se os religiosos, o que temos entre o povo-de-santo da Grande
Florianópolis na atualidade é um imenso coletivo que se move numa complexidade
de relações e que tem, como motor principal a convivência intensa, notadamente em
situações festivas. Ou seja, não é possível pensar o conceito de organização
humana apenas do ponto de vista da racionalidade ocidental que considera
somente as instâncias consagradas das motivações sociais, econômicas ou
políticas: sindicados, associações de bairro, partidos políticos, etc. A
organização dos adeptos das religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis
é eficaz e intensamente articulada, mas ocorre pelos viezes da confraternização
e celebração religiosas e do lúdico. E porque não considerar as “fofocas” tão
negativamente apontadas pelo povo-de-santo, como um verdadeiro fórum de debates
que, evitando a discussão aberta e direta que poderia resultar em sérias
rupturas, toca nos pontos nevrálgicos que afluem das inter-relações entre
os terreiros?
A diversidade
como princípio
A aceitação e
a inclusão da diversidade religiosa é, para alguns adeptos, um princípio
fundamental e uma das principais estratégias de consolidação da rede do
povo-de-santo. A natureza inclusiva e acolhedora das religiões afro-brasileiras
é a responsável por sua aceitação e pelo seu futuro promissor. Para alguns, a
aceitação da diversidade religiosa é uma determinação do plano espiritual:"Foi o próprio Cristo quem disse: 'Muitos caminhos levam à morada do Pai'. Cada um segue o que se sente mais apto e acha que é melhor, porque a essência é só uma: Deus, Tupã, Olorum. O nome não importa." (Mãe Eldeni)
Para outros adeptos, a inclusão e incorporação da diversidade de credos é a explicação para a extensa penetração das religiões afro-brasileiras entre variados setores da sociedade. Esta prática fundamenta-se no exercício da caridade como meta espiritual a ser cumprida acima de qualquer outra determinação do plano material
A convivência na diversidade do interior do terreiro tem seus próprios parâmetros organizativos. Na relação entre mulheres e homens, a liderança histórica e maior presença é das primeiras, por motivos espirituais ou materiais. O homossexualismo é polêmico, mas aceito no espaço religioso afro-brasileiro local. Os heterossexuais masculinos tem maiores dificuldades de integração por inúmeros fatores sociais. Ocorre, portanto, uma inversão valorativa da sociedade em geral. É a hierarquia religiosa que determina a posição dos indivíduos dentro do grupo e impede que os desníveis da sociedade em geral repercutam dentro deste. Portanto, a relação entre negros e brancos também é determinada pela precedência da “hierarquia-do-santo”. Na Grande Florianópolis, na virada para o século XXI, permanece o desejo de afirmação da matriz africana entre as religiões afro-brasileiras, mas sem exclusão de qualquer etnia de seu interior. Não há predomínio de um grupo étnico sobre outros, mas hegemonia da cultura de origem africana sobre outras contribuições, aí incluídas as de matriz européia, apesar da forte presença destas no cenário demográfico do estado de Santa Catarina.
Cruzando as
dimensões material e espiritual
Articular vida
material e espiritual é um desafio filosófico e prático que, auxiliando a
superar preconceitos na primeira e harmonizar as atividades entre ambas,
contribui para a solidificação da rede. Para alguns adeptos, há continuidade
entre os planos material e espiritual; para outros, separação. A crença nas
divindades motiva a continuidade, mas não há interferência do plano espiritual
sobre o material, à exceção das violações de dogmas. Em geral, a vida material
é plena de livre arbítrio, sem medo da condenação espiritual sobre estilos de
existência cotidiana.No trabalho interno de formação e desenvolvimento dos terreiros, o binômio atendimento/desenvolvimento constitui a base teórico-prática, mutuamente complementar e retroalimentador. A ação do guia espiritual auxilia na vida cotidiana de médiuns e consulentes. Em alguns grupos, as atividades de estudo e formação buscam superar o praticismo espontaneísta, objetivando o aumento da eficácia espiritual. Há uma vinculação entre crescimento do saber racional e espiritual. As fontes informativas são orais, emanadas por pais-de-santo e guias espirituais, e escritas, consultadas e elaboradas a partir de materiais impressos, ou coletados na Internet. A diversidade de conhecimentos é objetivo da formação, bem como atualização, adaptação e evolução destes numa perspectiva de democratização do saber e da ação teórico/prática.
A missão da caridade é a motivação maior da mobilidade do grupo e o mal é rejeitado como possibilidade. Esta traça a ponte entre o interior e o exterior do terreiro, aproximando-o da sociedade
Considerações
finais
O
povo-de-santo da Grande Florianópolis constitui-se em uma rede humana que se
estende por todo o tecido social, cuja trajetória de resistência e luta pela
afirmação, tem representado um espaço de referência espiritual e social para os
mais variados segmentos populacionais ao longo de sua história. Na entrada do novo milênio, o povo-de-santo da Grande Florianópolis propõe uma espiritualidade aberta à diversidade, negando o fanatismo religioso e afirmando o comando cultural da matriz afro-brasileira. No plano social, apresenta uma organização coletiva original, baseada nas relações informais de amizade, parentesco e vizinhança, alternativa à racionalidade cartesiana e sua invisibilidade aparente desabrocha em uma presença ativa, lúdica e dinamizadora entre os mais variados setores da sociedade, contribuindo na promoção de atores e práticas culturais secundarizados ou marginalizados pela lógica hegemônica, e, entre estes, negros, mulheres e homossexuais, notadamente os pobres. Diante da fragmentação da realidade urbana, oferece espaços de reordenamento de laços familiares e comunitários e um novo sentimento de pertencimento. A recriação desse universo de pertencimento, longe de ser uma forma de encerramento sobre si mesmo, influi e transforma a sociedade envolvente, resignificando a espiritualidade como prática social e filosófica essencial para a trajetória da humanidade, superando o imediatismo materialista das relações estabelecidas exclusivamente sobre as bases econômicas, sociais ou políticas da vida material.
[1] Para entender a lógica
e possibilidades da constituição da família-de-santo ver Lima, Vivaldo da
Costa. A família-de-santo nos candomblés jeje-nagô da Bahia
Artigo de Cristiana Tramonte
Centro
de Educação - Universidade Federal de Santa CatarinaPostado por Alexandre J. de Souza 09/04/2018
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